NOSSAS LETRAS

Vamos fazer um filme

A literatura de horror é a chave para entender nosso tempo. Leia a crônica de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 11/02/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Take 1: Censura na Oficina
Sério que termina assim? vai dizendo o parecerista inspetor designado pela “Fundação Mais Esporte Que Arte e Cultura do Noroeste Paulista” que veio à oficina com ordens de censurar nossa direção. Ele faz como todo censor de pouca literatura ao dissimular seu prazer contido diante das possibilidades da tortura. Li o roteiro e devo avaliar com justiça o funcionamento da produção do filme e a mecânica do discurso (palavras pareceristas do inspetor) e entendemos que seu projeto “mulher infeliz sequestrada, abusada e morta” é violência gratuita de fácil alegoria à Brasília estuprada em janeiro – mas a linguagem sadomasoquista nem chega a ser tortura, conclui o irônico sarcástico predador.

Nossa equipe teme a opinião do inspetor parecerista delegado, estamos empenhados na produção desse curta-metragem há meses. Sem o dinheiro público do incentivo Lei de Paulo Gustavo ficaremos na merda sem patrocínio privado de novo. Não recuperamos da pandemia, a cultura ainda pede socorro. E sabemos que sensor de qualquer governo tem poder de interferir no andamento das obras. Adeus Gramado, Franca nunca mais se cortarem orçamento e gravações.

Mesmo sabendo o inspetor parecerista truculento de inteligência curta, justificamos a cena antes de filmar na presença dele: é drama inspirado em Kafka e Allan Poe ao que ele riu num tanto faz como tanto se faria. A literatura de horror é a chave para entender nosso tempo. Seguros na direção proposta e com respeito à evolução da linguagem ensaiamos na presença do censor.

Clara já pode ser vista abrindo os olhos para sentir a vida no limite do prazer extremo. Na penumbra macia da sala escura, deitada nua na maca branquíssima, a pele molhada toca fina chapa de zinco. Gradualmente, como se acordasse primeira vez, a mulher percebe a companhia do Benfeitor e seus passos convictos. Batidas ocas do solado de borracha em madeira criando atmosfera cardíaca. Ele contorna o primeiro plano do enquadramento e umedece o close-up dos lábios de sua vítima com esponja embebecida em vinagre. O prazer dela aumenta claramente. O gemido amedrontado e nítido da agonia aguda faz estremecer as mãos firmes do carrasco, ele espeta dois grampos interligados por fios condutores de eletricidade nos dedos bastante finos de Clara. O bandido, aqui chamado Benfeitor para ressaltar que todo destino é fabuloso, asperge delicadamente a solução ácida sobre o corpo despido, fina camada de éter perfume. O medo sublime imponderável envereda por delgadas passagens na mente de Clara. Outros fios elétricos nos dedos dos pés. Nos calcanhares prendedores agulham imantados e se conectam perfeitamente aos orifícios previamente esfolados em três pontos. O bronze das agulhas tine à meia luz ambiente. Clara levitaria se não estivesse amarrada, afoga-se enebriada na matéria densa mais leve que a morte. O Benfeitor não diz palavra, circula o corpo e toca a face desfalecida ainda vibrante. O brilho intenso nos olhares tem cumplicidade e fagulham. Agora os lábios arroxeados de Clara recebem acupuntura, micro rupturas sangram conduzindo energia. O prazer mórbido obnubila sua visão inesperadamente iluminando a lembrança de nunca ter vivido de fato. A conexão no suplício crespa ardor intenso. Finalmente o êxtase previsto. Clara finalmente está livre. Já não pesa à dor que a trouxera até aqui, e morre desejando o beijo do seu benfeitor.

Com o take 1 finalizado, nos resta esperar uma semana para recebermos o relatório do inspetor. Se vamos ou não continuar o projeto do nosso filme depende...

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