NOSSAS LETRAS

Jampa

Persiste pelo Brasil afora falsa percepção sobre a Paraíba, talvez por ter sido um dos berços do cangaço. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 21/01/2023 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN

Persiste pelo Brasil afora falsa percepção sobre a Paraíba, talvez por ter sido um dos berços do cangaço, fenômeno que rendeu figuras históricas como Lampião e Maria Bonita, líderes de um bando sanguinário que aterrorizou o interior e a polícia federal. No inconsciente coletivo parece perdurar um temor sutil de que traços da antiga barbárie se façam presentes de forma indireta. Nada mais incorreto nessa crença. Os paraibanos de João Pessoa, carinhosamente chamada pela população de Jampa, que encontramos no começo deste janeiro, nos mostraram índole pacífica, amor à terra, dedicação ao trabalho e uma civilidade que deriva de respeito e acolhimento. Longe qualquer rudeza: mesmo o vendedor ambulante mais humilde, que nos oferece mercadorias que recusamos, oferta um sorriso, deseja bom dia, pergunta de onde viemos, agradece nossa atenção. 

Se o povo é lhano, as praias são deslumbrantes, o que nos faz pensar nos recursos naturais de nosso país tão enxovalhado pelas más administrações. Cabo Branco, onde se concentram hotéis, é só tranquilidade. Nada de gente que grita, ouve música em volume abusivo, deixa lixo na areia. Não se veem restos de plástico ou isopor debaixo de barracas, muito menos nas ondas que devolvem tudo que a elas é destinado. Tambaba, repleta de corais que contrastam com as águas esverdeadas, fica ao sul, e foi o primeiro reduto de nudismo regulamentado no país. Tambaú, a mais badalada, está a anos-luz dos agitos das praias de Salvador, Fortaleza, Natal, Recife. As praias do Conde, do Bessa, do Coqueirinho (com trechos de piscinas naturais formadas por falésias) e outras mais compõem os 117 km dessa orla magnífica. 

Barracas coloridas fazem a sombra necessária, porque os raios solares pedem muita proteção. Para reidratar, a toda hora sucos e batidas de frutas locais, como graviola, caju, coco verde, manga, cajá, acerola, mangaba. E sapoti, sobre a qual eu nutria curiosidade desde que, menina, ouvia no rádio o locutor anunciar “Angela Maria, a sapoti do Brasil”. Em certo momento homem idoso passou por mim com uma peneira grande cheia dos frutos que tinham aparência de kiwi. “Três por dez”, falou baixo, sereno. Comprei seis, depois de ser repreendida: “A senhora me descupe, mais é sapUti e não sapOti”.  Sorri pra ele. Quem seria eu a contestar o falante paraibano? Esperei nada para degustar o sabor que me lembrou mel e canela concentrados na textura semelhante à de pera madura. Prazer supremo experimentar algo tão bom pela primeira vez.

( E como não lembrar Alceu Valença: “Da manga rosa quero o gosto e o sumo/Melão maduro, sapoti, juá/Jaboticaba, teu olhar noturno/Beijo travoso de umbu, cajá/Pele macia, é carne de caju/Saliva doce, doce mel, mel de uruçu/Linda morena, fruta de vez temporana/Caldo de cana caiana/Vou te desfrutar/Morena tropicana...”)

Às três da tarde as pessoas começam a se retirar das praias, porque a noite cai cedo por lá no verão. Às cinco o Sol já vai ao terço final de seu caminho descendente rumo ao horizonte.  Afinal, naquele litoral se encontra o ponto mais oriental das Américas, a Ponta do Seixas. Em linha reta, quatro mil km nos distanciam (ou aproximam?) da África. Há um portal indicativo no lugar: “Aqui o Sol nasce primeiro no continente americano”. Deveria haver um adendo: “e se põe primeiro também.”

Aliás, nesta hora do crepúsculo, experiência espetacular é oferecida a quem vem de outros rincões e também aos locais que se amontoam numa das margens:  o pôr do sol no rio Paraíba. Com direito a uma apresentação de Jurandir, o saxofonista que há trinta anos comove corações tocando um trecho do Bolero de Ravel. Lágrimas furtivas brotam nos olhos dos mais sensíveis, comovidos com a música e a imagem da bola de fogo mergulhando nas águas que logo à frente desaguarão no mar, ainda no município de Cabedelo. “ Cadê o Sol?”- perguntará Fernando, o menino de três anos de minha sobrinha Tatiana, que lhe responderá: “Amanhã ele volta, do outro lado”

Do outro lado estão as áreas urbanas e fazer um passeio pela capital é preciso. Poucos sabem ser ela uma das cidades mais antigas do País; a quarta, exatamente.  Os primeiros portugueses ali chegaram em 1585 e pouco depois plantaram a semente do que viria a ser a Cidade Real de Nossa Senhora das Neves. Entretanto, holandeses a invadiram por volta de 1630 e a dominaram até 1654, período em que recebeu dois nomes: Filipeia e Frederikstad, homenagem a reis.  Depois da expulsão dos invasores, passou a ser chamada de “Cidade da Parayba”, em alusão ao rio homônimo cuja etimologia nos remete a “rio difícil de navegar”, na língua dos tupis, primeiros habitantes. João Pessoa é cortada por um afluente do Paraíba, o plácido Sanhauá, cujo nome quer dizer “pedra redonda” e habita com seus mitos o imaginário popular.

No centro histórico, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 2007, encontram-se alguns vestígios do período e representações maiores de arte barroca, especialmente no magnífico Museu/Igreja de São Francisco, contraponto à modernidade do Centro de História, Cultura e Artes, do arquiteto Oscar Niemayer. A literatura encontra refúgio no prédio da Academia Pessoense de Letras mas também no Museu das Estátuas, onde Ariano Suassuna espera na porta o visitante para conhecer a Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do Vai e volta; Augusto dos Anjos se posta ao lado do primeiro exemplar do único livro de poemas que escreveu, “Eu”; Luiz Gonzaga toca sua sanfona, abrindo caminho para outros grandes nomes paraibanos da música e das letras. Considerada pela Unesco “Cidade criativa” e "Cidade Brasileira do Artesanato”, Jampa se coloca na rota turística brasileira também por sua arte popular. O Mercado de Artesanato Paraibano é um prédio enorme de dois andares onde centenas de artesãos expõem seu trabalho.

Por desconhecimento, a maioria das pessoas tende a imaginar o Nordeste como um bloco homogêneo, com praias, sol escaldante, areias brancas, coqueiros e “um mar que não tem tamanho, um arco-íris no ar” conforme é descrita a baiana Itapoã pelo carioca Vinícius de Moraes, numa imagem que se tornou protótipo do litoral nordestino. Entretanto, há muitos nordestes, com seus mares de nuances diferentes, natureza singular, sotaques próprios, danças seculares, artesanato peculiar e culinária diferenciada. A Paraíba é um Nordeste com características próprias, que garantiram à sua capital outros títulos além dos citados, como o de “Cidade mais verde do Brasil” e “Segunda capital mundial mais verde do mundo”, o que é explicado em grande parte pelo imenso jardim botânico plantado no coração da cidade, composto por 90% de espécies nativas, pedaço respeitável de floresta. A brisa morna e constante é outra bênção para 900 mil habitantes e turistas que não formam hordas por ali. Ainda. Os   últimos dados do  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA,  mostram Jampa como a capital menos desigual do Nordeste. Nossa impressão de visitantes também passou por aí.

Valeu a pena descobrir um pouco deste pedaço de meu país, do nosso Brasil. Quero voltar. Mas antes pretendo conhecer o Maranhão, o Piauí e Sergipe. Mesmo sabendo que um dia só pode ser considerado bom ou mau depois do último raio de sol, tenho a impressão de que a linha que costura os nove estados dessa populosa região, e forma uma colcha única de belos retalhos, tem na resiliência, no apreço pela terra natal e na arte do povo grande força identitária.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.