NOSSAS LETRAS

A primeira romancista brasileira

Oportuna e louvável a homenagem prestada a Maria Firmina dos Reis pelos organizadores da última Flip, Festa Literária de Paraty. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 17/12/2022 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN

Reprodução de imagem da revista Cult

Maria Firmina Reis
Maria Firmina Reis

Oportuna e louvável a homenagem prestada a Maria Firmina dos Reis pelos organizadores da última Flip, Festa Literária de Paraty. Poucos sabiam ser a maranhense nossa primeira romancista, que se construiu de forma extraordinária pelo que nos conta a sua escrita, já que de sua vida sabe-se bem pouco.

Dados concretos são os referentes às datas de nascimento na capital do Maranhão, em 1822, ano da Independência do Brasil, e de morte, em 1917, na cidade de Guimarães, onde viveu a maior parte de sua vida. Outros fatos dizem respeito à filiação ilegítima de um pai branco e de uma mãe, Leonor Felipa, negra alforriada. Quando ficou órfã, Maria Firmina foi acolhida pela tia paterna, que a alfabetizou e lhe abriu os olhos aos livros da pequena biblioteca doméstica, um bem raro entre pessoas pobres. O tio, Sotero Reis, professor, gramático e filólogo, seria outra figura importante na vida da menina.

Exceção na época era uma preta formar-se professora, o que Maria Firmina conseguiu. Ainda mais singular ser aprovada em concurso para lecionar em escola pública, o que denota seus conhecimentos e coragem de enfrentar o preconceito. Quanto às qualidades morais e éticas, a anos luz da mentalidade de sua época, desvelam-se na sua obra, composta pelos romances Úrsula, de 1859 e Gupeva, de 1862; pelo conto A Escrava, de 1887; pelo hino por ocasião da assinatura da lei Áurea; por Cantos à beira-mar, onde o eu lírico aparece intimamente relacionado à biografia de poeta angustiada e melancólica.

Angústia e melancolia eram temas inerentes ao Romantismo dominante nas letras (masculinas). Maria Firmina vai além, antecipando a crítica de Castro Alves em Navio Negreiro e de Bernardo Guimarães em A Escrava Isaura. Em Úrsula, se ela cria a saga típica do gênero, que é marcada pelo amor contrariado de dois jovens brancos, coloca num (só aparente) segundo plano as potentes falas de africanos escravizados. Como a de Antero, que sofre a opressão de homens autoritários e cruéis, protagonistas de um sistema patriarcal e racista fortemente enraizado no Brasil: 

"Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão, fomos amarrados em pé e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa".

Ou a fala de Suzana, mulher escravizada mas lúcida, que assim manifesta seu sentimento diante do que vê: “É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos.”

Esquecida por um século, a obra de Maria Firmina dos Reis foi descoberta em 1962 num sebo carioca pelo historiador Horácio de Almeida, a quem se deve o regate do romance, das outras obras e da própria escritora. No seu trabalho de pesquisa, ele encontrou na edição de 11 de agosto de 1860 de um jornal de Guimarães, pequena nota sobre o lançamento do romance Úrsula -original brasileiro. O adendo ao título chamaria a atenção do leitor para o fato de ser obra de autor nacional e não tradução de história europeia? É possível.

O anúncio mínimo, e pago, poderia passar despercebido, mas algo chamava atenção em suas últimas linhas: a autoria feminina da “exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis, professora pública em Guimarães”. A propósito, quando se formou em magistério, em 1847, Firmina já tinha uma postura antiescravagista bem desenvolvida e articulada. “Ao ser aprovada em concurso para professora, recusou-se a andar em um palanque desfilando pela cidade de São Luís nas costas de escravos. Na ocasião, teria afirmado que escravos não eram bichos para levar pessoas montadas neles”, escreve José Nascimento de Morais Filho, o autor da biografia Maria Firmina- Fragmentos de uma vida.

Depois de se aposentar, numa experiência educacional inusitada, ela criou uma escola particular onde as turmas eram formadas por meninos e meninas, o que soou surpreendente. Foram os resultados obtidos como alfabetizadora que lhe granjearam respeito e estabilidade, conferindo-lhe condição para publicar o primeiro livro, após escrever poemas, palavras cruzadas e histórias para jornais. Mesmo assim, talvez pela consciência crítica dos preconceitos enfrentados por mulher e negra, ao se apresentar ao leitor de seu livro de estreia, ela escreve:

“Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o risco mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.”

Anos depois, quando o movimento abolicionista já pressionava o imperador e a elite, a autora publicaria um conto ainda mais crítico, A Escrava (1887), que conta a história de anônima de classe alta que tenta, sem sucesso, salvar uma escravizada. A crítica chegava a um patamar mais contundente e a autora fala pela voz da protagonista: “O regime da escravidão é e sempre será um grande mal.”

Um discurso feminino e antiescravagista numa das províncias mais escravagistas e machistas do Brasil teria de pagar o preço pela coragem. O assunto era por demais indigesto; a elite letrada não queria falar sobre isso. Sem ter como levar seus livros a outros centros, a autora os viu esquecidos no fim de sua vida, afetada por pobreza e cegueira.

Ler agora Maria Firmina dos Reis, neste momento da nossa história onde os graus de civilidade já conquistados são ameaçados a torto e a direito, é relembrar que racismo, machismo, patriarcalismo e escravidão estão na raiz de nossas mazelas nacionais, uma delas a dificuldade de criar um sistema de educação pública de boa qualidade que poderia promover a médio prazo a diminuição das desigualdades e dos preconceitos.

Ler neste ano de 2022 a autora de Úrsula, Uma escrava, Gupeva, Cantos de além-mar e do Hino da Libertação dos Escravos é uma maneira de “encarar os fantasmas de nosso passado, responsáveis pelo déficit de nossa cidadania”, como escreve o escritor e professor João Gabriel de Lima, para quem “a homenagem da Flip à Maria Firmina dos Reis nos lembra que nosso país não pode ser como o enredo de Úrsula, onde um folhetim romântico é fachada para uma realidade de pobreza e exclusão - realidade vivida por milhões de brasileiros”.  Eu concordo com ele. E você, que chegou até o fim deste comentário?

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