NOSSAS LETRAS

Lugares desconhecidos

Bourdain mostrou ao público a diversidade do mundo. E não apenas no referente à mesa, como fora de início a proposta de série. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 10/12/2022 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Reprodução

Ouvia amigas e amigos confessando-se meio órfãos quando a série a que estavam assistindo chegava ao fim. Achava a reação curiosa, pois ainda que seguindo alguma com muito interesse, nunca tinha sido afetada a este ponto pelo seu término. Até que no último domingo, como tenho feito desde que a CNN colocou no ar “Lugares Desconhecidos”, sentei no meu canto favorito para ver mais um episódio comandado por Anthony Bourdain e fui informada de que aquele seria o penúltimo.

Algo difícil de digerir tomou conta de mim. Como assim? Vai acabar?! Sabia que um dia terminaria; uma série é finita como a vida. Mas de ilusão também se vive e eu acreditava que ainda desfrutaria de momentos de beleza em regiões ignotas. O fim estaria longe, pensava. Tinha me enganado. Então entendi as amigas e os amigos privados de mais capítulos de história emocionante.

Da mais escondida aldeia chinesa a uma cabana no sopé das Montanhas Rochosas; da selvagem Bornéus, onde porcos são mortos a flechada, ao interior do Irã, onde a vida de um estrangeiro corre risco; do interior da Irlanda com o waffle de noz pecã à ilha de Okinawa com saga do macio sanduíche de ovo; das peixeiras pornográficas da Sicília aos polvos congelados do México; da Bahia à África e à Antártica, Bourdain mostrou ao público a diversidade do mundo. E não apenas no referente à mesa, como fora de início a proposta de série, mas também, e muito mais, em relação a costumes, tradição, inovação, geografia e história, ciências e tecnologia, sociedade, política, mitologia. 

O episódio a que me referi trouxe para a tela todos os profissionais que acompanharam Bourdain pelo planeta e eles estavam muito tristes. O depoimento de cada um tornou-se homenagem que se presta a quem se admira, embora nem sempre se entenda. O homem era difícil, tinha temperamento custoso, o que não transparecia nos seus sorrisos para as câmeras nem nas piadas inteligentes. Os mais íntimos sabiam que seu maior inimigo era ele mesmo, residia no alto grau de exigência com todo trabalho em que se envolvia, fosse como chef, cozinheiro, escritor. Antes de tudo era o artista que afirmava: “Faço tudo para alcançar a beleza”. Havia objetivos que pareciam impossíveis de serem alcançados, como mostrar ao espectador que era belo beber sangue diretamente da jugular de um búfalo. Pois ele conseguiu.

Não sossegava enquanto não atingisse o que considerava o ponto mais alto da excelência. Esse comportamento poderia ter desfeito a equipe, caso Bourdain não fosse também uma pessoa gentil, um homem de bom coração, um espírito curioso, um ser humano, demasiadamente humano em suas incoerências, a viver entre o controle e o caos, este de onde provinha, segundo costumava dizer, “uma energia intangível.”

Famoso, bonito, carismático, inteligente, culto, brilhante, o que faltava para que fosse feliz? Foi uma pergunta que correu o mundo quando seu corpo foi encontrado dependurado por uma ponta de lençol no quarto que ocupava no interior da França, onde gravava mais um episódio da série que se tornaria premiada com sete Emmy. Corria o ano de 2018. Houve quem se lembrasse do tempo em que consumiu opioides que quase lhe custaram a vida. Os que fizeram menção a suas enormes dívidas, contraídas por quem gastava cada vez mais para fazer da série algo extraordinário. E os que atribuíram sua depressão de meses e o desesperado gesto final ao comportamento infiel da atriz Asia Argento, por quem Bourdain era loucamente apaixonado. As causas podem ser uma, todas ou nenhuma. Elas residiam em lugares desconhecidos para nós, espectadores. E, talvez, para o próprio Bourdain. Tais lugares, quando desvelados, podem provocar sofrimentos intensos. Lembro-me agora de que no episódio que mostrou as Filipinas, ele não se conteve ao ouvir em Manila uma senhora idosa, Aurora Medina, cantando a canção com que embalava seus bebês. As lágrimas tremularam, mas não correram pela face. Duro na queda, ele não deixou. Nunca havia chorado diante das câmeras e aquela não seria a primeira vez.

Anthony Bourdain passou a maior parte de sua vida na estrada, e grande parte de seu tempo com olhos bem abertos. Desde os restaurantes mais sofisticados aos botecos das periferias e às barracas de rua, buscou mesmo foi a conexão com as pessoas por meio da comida. Genuíno, curioso, honesto, envolvente, sempre à procura de sabores novos e pessoas verdadeiras, contou histórias ao longo de sua carreira e mostrou o mundo de uma maneira diferente. Foi genial.

Neste domingo verei o último episódio. Já percebi que terei de lidar com o sentimento de orfandade ao qual meus amigos se referem.

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