NOSSAS LETRAS

Criança de domingo

Tudo em volta limpo, ela se sente mínima silenciada. E pensa: dá trabalho não estar em nada. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 03/12/2022 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Reprodução

Cena do filme ‘Um Cão Andaluz’, de 1929, escrito e dirigido por Salvador Dalí e Luís Buñuel abriu as portas do surrealismo
Cena do filme ‘Um Cão Andaluz’, de 1929, escrito e dirigido por Salvador Dalí e Luís Buñuel abriu as portas do surrealismo

Tudo em volta limpo, ela se sente mínima silenciada. E pensa: dá trabalho não estar em nada.

O trovão dura a eternidade de 340 quilômetros por segundo, o clarão repentino confirma em negativo a existência do mundo natural. Assombrada, ela vigia cada sombra estendida a partir de si indo na direção dos objetos inanimados, ela imagina os galos ainda desmaiados inconscientes do sol eterno, os cães dormentes babando de sonhar ossos magros, as sombras fora e dentro de ladrões assustados em suas almas à espreita do medo das mesmas sombras em que o pensamento dela se perdera: se eu sei roubar minha paz.

Ela também sabe perdurar a sobriedade do instante e alongar-se mais serena.

Nossa esperança posta sempre no porvir resvala na perspectiva de que o passado é ruína sem resgate. Basta uma situação sem remédio e a tormenta nos distrai de sermos de fato desejo sobre ruínas. O amor pode ser a última fronteira da filosofa, esse desfiladeiro de perspectivas que nos esvazia de tanto saber. Ela pensa não sentir, faz tempo que não se corta.

Qualquer dor física é melhor que essa no peito, apertando... sufoco na garganta e sombra nas pupilas, pânico. Quem sabe um amigo perto da insanidade, ou parente irmão irmã tio cunhado, e recua no julgamento moral para não dizer dela “é doida”. Olhai os lírios nosso colírio, nosso delírio de colibri. Chegar perto de verdade de qualquer pessoa daria um compêndio sobre o desespero de saber-se vivo, também da alegria fugaz que pode nos assaltar entre os momentos de tédio.

É isso, estou vencendo o tédio sem fazer nada. Apenas presente na minha consciência e produzindo outro eu mais fundo entre camada de sombra. Ela diz em voz alta: isso não é natural - como se a natureza humana desfizesse a ideia de natureza dada por deus, pensa – e conclui ouvindo a própria voz: a existência da humanidade é mesmo um erro na criação. É na superfície lisa da mesa de formica que ela se estende além de si, o vazio impreciso. Somos sombras nas sombras.

Eu preciso de ajuda, alguém que me ouça paciente sem cobrar nada por isso.

Não há luz além dos raios no breu do céu.

Tão nova, diriam vocês se a conhecessem: como pode ter vivido tanto? A maioria de nós passa pela vida como se tocasse numa banda instrumento qualquer, sem preferencias nem singularidades. Mas ela alonga o que vai em sua alma porque presente que tudo é pouco. Ela quer mais e tanto e então alonga-se para dentro das sombras em busca da luz do dia a demorar. Estende aspectos da sua personalidade tentando entender cada milímetro de pele, sentir-se outra. Preciso concentrar quem sou. 

Ser mil e ainda uma. Má negligente boa altruísta casual fanática fiel puta de esquina dama da alta sociedade ou uma vendedora de fósforos revisitada numa revista do século dezenove. Péssima companhia ou a melhor pessoa do mundo. Nesse momento ela diz continuamente o mantra sem sobressaltos ou derrapagens ou cortes inexplicados ou suspensões reticentes: preciso alinhar desafetos e ordenar as prioridades para dispersá-las sobre a ilusão da urgência.

Por fim ela decide diluindo as sombras: hoje não vou mutilar meu corpo; talvez me mate amanhã, mas hoje não. E então o amor faz girar a terra, o coração humano e outras estrelas.

Sem menção ou medida, o corpo dela agora diluído nas ondas de seu pensamento circunscreve desfalecimento epiléptico, ela borda seu nome em guardanapos: criança de domingo. A voz espada flamejante incrustada na pronúncia do trovão, ela nunca se sentiu tão plena efêmera metálica cortante limpa mínima silenciosa consciente viva.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Irene Coimbra
    03/12/2022
    Texto profundo! \"E então o amor faz girar a terra, o coração humano e outras estrelas.\" Amei!!!