NOSSAS LETRAS

A brasa não se apagou

Em outubro, ao passar pela avenida São Vicente, bem próximo do condomínio onde moro, vi outdoor anunciando a vinda a Franca de Erasmo Carlos. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 26/11/2022 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Reprodução/Acervo/Editora Globo

Em outubro, ao passar pela avenida São Vicente, bem próximo do condomínio onde moro, vi outdoor anunciando a vinda a Franca de Erasmo Carlos. Parei na contramão, ops, num posto para abastecer. E liguei para minha irmã: não poderíamos perder este show, anunciado para 26 de novembro, de jeito nenhum. Ela concordou comigo.

Ambos éramos fãs dele desde os tempos das jovens tardes de domingo. Neste dia, durante anos, podia acontecer o que fosse, não nos abalaríamos de casa. Aliás, acho que nós e noventa por cento dos que andavam na mesma faixa etária agiam do mesmo modo. No nosso caso específico, cumprir todas as tarefas domésticas a que nossa mãe nos obrigava garantia assistir depois, grudadas no velho sofá de courvin marron, ao desfile de nossos ídolos na TV Record.  Erasmo, Roberto, Wanderleia e sua turma nos iluminavam. Tudo ficava bonito. Velhos tempos. Belos dias.

Hoje, olhando em retrospecto, admito que nutria paixão velada por Erasmo, embora fosse Roberto quem estivesse com mais frequência nas bocas femininas. Gostava do contraste evidente entre a compleição de gigante do artista e o coração de menino explícito em sua ternura, olhar, meneios. Adorava as canções que só chegavam ao âmago de meu coração na voz dele. Elas me emocionavam e, certamente, a milhares de adolescentes que vibravam com o rock nacional criado pela genialidade dos que haviam se inspirado em Bill Halley e seus cometas, Chuck Berry, Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones...

Mas o tempo passou para a turma da Jovem Guarda, que havia afinal revolucionado a música brasileira. E passou para os fãs, não mais garotas e garotos que formavam na primeira fila. Na verdade, nos transformávamos todos. Assim, a TV Record, depois de muitos anos, tirava do ar o programa dos domingos, porque o modelo se esgotara. Todo mundo havia crescido, existiam outros desejos, novas demandas. Àquela altura Erasmo Carlos, já consagrado, buscava rumo próprio. Ficavam para trás “Gatinha manhosa”, “Vem quente que eu estou fervendo”, “Festa de Arromba”, “A carta”, “Minha fama de mau” (que se tornaria filme em 2019, com Chay Suede interpretando Erasmo). Novas melodias adquiriam um timbre que se conectava rapidamente às letras que o compositor criava, algumas solo, outras em parceria com Roberto, o amigo de fé, o irmão camarada de toda a vida.

Grande demais para se circunscrever a um só gênero, Erasmo, em certo momento da vida sentou-se à beira do caminho e vislumbrou muitas possibilidades. Passou a gravar músicas de outros compositores, uniu-se a novos parceiros. Em consonância com as mudanças, mostrando-se  antenado  com tudo o que acontecia no cenário musical e social, antecipou-se aos movimentos culturais. Como na canção que fez para a mulher Narinha, louvando em “Sexo Frágil” (1995) a força da mulher quando pouco se falava de machismo em nosso país. Era um contraponto a “Mesmo que seja eu”, sucesso de 1982, onde tentava convencer sua namorada de que ela só seria feliz num relacionamento com ele. Estas duas canções, que têm diferença de treze anos, são um exemplo do estilo narrativo de Erasmo; ele está na maioria das vezes nos contando uma história simples, mas de forma tão plástica e numa melodia tão envolvente que  se forma rapidamente no nosso pensamento e ganha morada na memória. Tal estrutura apenas se sofisticou, pois sempre foi parte do estilo do artista:  a linda “Sou uma criança, não entendo nada”, hit regravado por inúmeros cantores, e que fala sobre a criança interior que permanece no íntimo de cada adulto, é de 1974. Enfim, por décadas Erasmo Carlos foi emplacando hits, o que fidelizou sua presença junto ao público que, Brasil adentro e afora, cantava com ele. 

O novo século o encontrou super inspirado. Em 2001, a composição “Mais um na multidão”, parceria com Marisa Monte e Carlinhos Brown, fez sucesso tão grande que integrou a trilha sonora de duas novelas da Globo: “Pícara sonhadora” e “Salve Jorge”. Também com Marisa Monte ele compôs “Convite para nascer de novo”, letra esperançosa sobre depressão, sobrevivência, ressurreição. Otimista confesso, buscava aprender e procurava ensinar com suas canções, os segredos de uma existência plena onde o amor ocupasse o primeiro  lugar. “É preciso saber viver”, parceria com Roberto Carlos, escrita no pesado ano de 1968, gravada só em 1974 e regravada em 1996, mais do que canção mostrou a filosofia de vida adotada por Erasmo Carlos desde os tempos em que, aprendendo a tocar violão com seu vizinho Tim Maia, se virava nos trinta como office boy, porteiro de edifício, vendedor de roupas femininas.

Há cinco meses, em junho, ao completar 81 anos, talvez intuindo que seu tempo na Terra se esgotava, escreveu para seus seguidores nas redes sociais:

“Sou o resultado das minhas realizações... Gols e bolas na trave fazem parte do jogo já que a vida é curta e minha vontade é eterna... Sou o que pude e o que tentei ser em plenitude... Quis ser muitos e sobrou um quando dispensei meia dúzia dos que não me souberam ser... Contagiado pelo bem tornei-me um guerreiro da paz... O meu canto será ouvido assim como o som dos ventos, enquanto o sol brilhar e as lembranças  persistirem... Dei passos vendados em caminhos movediços para ser merecedor de um lugar no pódio do amor.”

Falar de amor neste nosso Brasil ensandecido por ódio que cega e fragmenta foi mais que belo; reafirmou o espírito revolucionário de um artista que elegeu na vida o sentimento mais nobre e compassivo que resiste em humanos. Ainda.

O show de Erasmo Carlos em Franca não aconteceu nesta sexta-feira, conforme fora anunciado. Mas minha irmã, eu e milhões de brasileiros de nossa geração continuamos a falar do artista imenso, e continuaremos a fazê-lo, “enquanto as lembranças persistirem”. Porque a brasa não se apagou, mora? Ela continua incandescente nas letras e melodias que nos resgatam para a beleza, o lirismo, o humor, a graça, a leveza, a reflexão, o movimento, a tolerância, a amizade. E  principalmente a importância do amor em nossas vidas.

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