NOSSAS LETRAS

Pânico em Cristalina

Os romances que pertencem ao gênero policial costumam seguir uma fórmula, o que não significa que as histórias sejam previsíveis ou entediantes. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 12/11/2022 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Os romances que pertencem ao gênero policial costumam seguir uma fórmula, o que não significa que as histórias sejam previsíveis ou entediantes. Pelo contrário, elas costumam ser instigantes. A narrativa é permeada por elementos peculiares, como a presença de um crime, a investigação geralmente conduzida por um policial, a revelação surpreendente da autoria: o criminoso é quase sempre o personagem acima de qualquer suspeita. Tais elementos são a receita de sucesso deste gênero popular que está na lista dos mais vendidos em todo mundo para leitores de todas as idades.

A ficção de suspense tem cronologia relativamente recente. Começa em 1841, com Edgar Allan Poe, um dos grandes nomes da literatura de língua inglesa, autor de poemas icônicos como “Nevermore”. Mas foi a prosa que o consagrou. A história de dois homicídios brutais vitimizando mulheres em Paris, publicada nas colunas de um jornal da Filadélfia, abriram-lhe o caminho da fama. “Os assassinatos da Rua Morgue” integram até hoje as melhores antologias de contos onde a intriga policialesca domina a cena. Outras histórias de Poe foram apresentadas ao público através do mesmo jornal, em capítulos conhecidos como folhetins, costume que perdurou até o início do século XX, quando passaram então a ser editados em livros de baixo custo para milhares de leitores. Auguste Dupin, o protagonista do conto de Poe, é o primeiro detetive da literatura de ficção. Ele precedeu dois outros célebres: o de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, e o de Agatha Christie, Hercule Poirot.

No Brasil, a primeira história do gênero aparece no ano de 1920, no jornal A Folha. Publicado em capítulos, “O Mistério”, escrito por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa, inaugurou a narrativa policial que posteriormente contaria com renomados representantes, como Rubem Fonseca, Marçal Aquino, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Joaquim Nogueira, Tony Bellotto, Luís Fernando Veríssimo, Flávio Carneiro, Patrícia Melo, Jô Soares, entre outros que continuam fazendo do policial um gênero cada vez mais respeitado.

Franca, cidade conhecida pelo grande número de escritores que vêm publicando prosa e poesia, tem poucos autores que se dedicam ao romance policial. Thereza Ricci é o nome mais conhecido no segmento, onde se exercitou inicialmente em contos. Depois de ter oferecido ao leitor “Quem matou Jacira?”, ela publica “Pânico em Cristalina”, história que se passa numa cidade em tudo parecida à Franca dos anos 80, seja na sua configuração física, seja como comunidade em desenvolvimento, que já atraía então jovens de cidades pequenas ou de áreas rurais para sua primeira Faculdade de Direito, desde sempre respeitada.

No novo romance, que tem o timbre da Ribeirão Gráfica Editora, há uma narradora em terceira pessoa que traz para as páginas a custosa busca ao autor de uma série de estupros praticados contra jovens universitárias. Os casos vão aparecendo aos poucos na delegacia comandada pela doutora Sílvia que conta com meia dúzia de dedicados investigadores. Ao fim de alguns meses um suspeito é detido, investigado e condenado por conta de uma prova de DNA, embora negue de forma peremptória as acusações que lhe fazem.  O passado de moço correto, funcionário burocrata a quem superiores e colegas respeitam pelo bom caráter, contam inutilmente a seu favor.

Como os estupros não cessam com o moço atrás das grades, e a violência volta a ser registrada, sempre do mesmo modo- o psicopata surgindo de repente no meio da noite no quarto das vítimas, paira dúvida sobre o verdadeiro  criminoso: será mesmo o que está preso e nega os crimes que lhe atribuem? mas o que dizer da prova colhida no lençol de uma das jovens? Por causa dessa inquietação, que permeia o cotidiano da delegada e sua equipe, e vaza para as páginas do jornal local que tem grande número de leitores na cidade e região, todo o pequeno aparato policial é pressionado a lançar luz sobre a verdade. Este é o eixo que move a narrativa e mostra como o trabalho da polícia e as decisões da justiça são às vezes afetados pela pressão da população e da imprensa que deseja ver logo descoberto o criminoso que atormenta a vida das mulheres que por contingências de estudo ou trabalho são obrigadas a morar desacompanhadas.

No posfácio, o escritor, presidente da AFL, advogado e promotor aposentado José Lourenço Alves avalia bem os movimentos do romance ao escrever que “não há a angustiante perseguição de um inocente, inevitavelmente alcançado por um complô maligno, no melhor estilo kafkiano. Tampouco há tecnologias manuseadas por profissionais argutos e capacitados, que vencem pela inteligência os desafios deixados pelo criminoso, no melhor estilo sherlokiano (...) A narrativa vai enredando e desenredando dilemas. Ora tratando despretensiosamente circunstâncias fundamentais da trama, ora provocando quem lê a fazer conjecturas, vai tecendo a deformação dos fatos e a abreviação do raciocínio para fechar questão sobre o perfil, se nem tanto culpado, culpável”.

A advogada Neusa Ribeiro e Silva, no prefácio, lembra que o livro “é uma iniciativa feliz da escritora, advogada Thereza Rici, que quando em forma de contos traz sempre, ou geralmente, casos verídicos, vivenciados ou não com seus olhos clínicos de criminalista.”

O tema que motivou a autora a escrever o livro é atual, recorrente, cruel e desvela uma sociedade onde a mulher pode se tornar objeto de violência sexual se as circunstâncias, como o fato de morar sozinha, conspirarem contra ela. Algumas sofrem esta brutalidade e se calam, pelas mesmas razões que levam as personagens da história a resistirem, no primeiro momento, a apresentar denúncia formal sobre o crime: o pudor e o medo.

 Que a leitura de “Pânico em Cristalina”, que nos remete em muitos momentos para a realidade circundante, sirva para alargar a consciência do leitor ao fato de que este tipo de crime é execrável e pede punição rigorosa. Mas que seja útil também para uma reflexão sobre o fato de que a pressão da sociedade e da mídia sobre a polícia e algumas instâncias do judiciário pode levar a julgamentos apressados, equivocados que subtraem a inocentes anos de vida que não serão devolvidos com a sua liberdade.

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