NOSSAS LETRAS

Escrever é gestar e parir

Nós, mulheres, em certa altura da existência, sabemos que algo novo se instalou em nosso ser, mesmo antes dos primeiros evidentes sinais. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 05/11/2022 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Nós, mulheres, em certa altura da existência, sabemos que algo novo se instalou em nosso ser, mesmo antes dos primeiros evidentes sinais. Um aguçado sexto sentido nos avisa sobre a novidade e prenuncia desejos estranhos, leves tonturas, incômodo com alguns odores, insights intraduzíveis. Alguma coisa dentro de nós enraizou-se e começou a crescer. Na maioria das vezes o teste de gravidez só confirma a suspeita de que a semente de um humano, que será em tudo diferente de outros, começou a brotar em nosso ventre. Gestar é, em geral, entrar em estado de graça. Escrever também. Ambos produzem vida.

Vejo similaridade semântica entre os dois verbos de origem latina. Escrever vem de escribere, ‘marcar com o estilo’, nome de um ponteiro ou haste de metal com o qual se representavam sinais e letras sobre uma superfície macia, gesto muito masculino em sua metáfora. Gestar deriva de gerere, que por sua vez nasce de gravis, “pesado, importante”. Grávida é a que leva um peso. Escritores e gestantes se parecem: carregam por certo tempo algo que precisa nascer e ganhar vida autônoma. Por conta disso em geral cumprimentamos uma autora, um autor, chamando ao seu livro recém-lançado de “filho”. É mesmo um recém-nascido.

Como o da gravidez, o processo de criação de um livro ocupa todo o tempo e suga as energias de quem o tem prenhe. Haja cuidados, preocupações, ansiedades, noites mal dormidas, consultas, expectativas. Se a elaboração do corpo materno construindo um ser é ininterrupta e árdua, diga-se o mesmo do trabalho da mente da escritora, do escritor construindo seu livro: incessante e custoso.

Neste ano, mais uma vez engravidei e senti por isso enorme gratidão. Assomaram-me os mesmos sintomas das outras vezes: apetites excêntricos, irritação com certos barulhos, aversão ao amargo e um prazer indescritível quando me assomavam lembranças que eu corria a registrar. Como idiossincrasia típica, andei viajando ao passado para melhor entender o que queria de fato traduzir do meu íntimo.

Depois de meses batucando no teclado, joguei no lixo uma parte que considerei apenas intrometida e isso me deu clareza sobre como sonhava de fato o meu filho/livro. Queria que fosse sobre algo que nos mantém vivos, o alimento para o corpo. Mas também que nutrisse outra parte de nós, a alma. Desejava que mostrasse de onde provinha nosso cardápio trivial. Mas também como ele tinha evoluído ao longo dos séculos. Ansiava por juntar ao que escrevesse, a prática das informações. Mas também a poesia que tantas vezes me habita para além da mesa, pela lembrança preciosa dos fatos retidos na memória afetiva.

Quando depois de sete meses tive certeza de que o livro estava pronto, percebi que faltava ainda muita coisa: as fotos, que de início seriam umas e depois foram outras; a capa que morava ainda na minha imaginação; as dimensões físicas do livro; o tipo de papel onde depositar as palavras. E uma revisão final, a partir de um olhar distanciado, que capturasse erros já invisíveis depois de tanto reescrever.

Para ler tudo e pontuar deslizes, recorri à Munira Nambu, editora altamente qualificada que trabalhou por anos comigo no jornal Comércio da Franca. Sobre as fotos, salvou-me o Dirceu Garcia, profissional capacitado com quem mantenho parceria há mais de vinte anos. A capa não poderia ter outro autor que não fosse o Matheus Xavier Louzada, outra prata da Casa GCN. O trabalho editorial confiei-o à Fernanda Ribeiro, da Ribeirão Gráfica Editora.

Em cada uma dessas etapas houve idas e vindas, como as contrações que precedem um parto. Às vezes eu achava que tinha chegado a hora de parir, mas lá vinha a frase a ser substituída, a palavra que seria mais adequada, o capítulo que exigia ajustes na forma, as fotos que precisavam de leves retoques, o título que mudou de fonte três vezes, a complementação da bibliografia. Etc. Foram mais dois meses de trabalho e, enfim, na manhã do dia 25 de outubro, nove meses depois de concebido, ele nasceu. Parto a termo, o nome já havia sido escolhido durante a gestação: “Prosa à Mesa”.

Assim que o recebi das mãos do Fernando e da Márcia, eu o amei. Achei lindo. E como toda mãe carinhosa, fiquei lambendo a cria. Desde então falei dele a muitas pessoas e o coloquei em exibição em vários lugares para ser adquirido. Sinto-me orgulhosa dele, ignorando os que dizem que elogio em boca própria é vitupério. Almejo que o leitor se interesse pelo livro nas suas vertentes culinárias e gastronômicas, com 97 receitas da nossa região; no aspecto histórico e geográfico que explica o aparecimento de muitos pratos; no viés sociológico como a interação das culturas que nos definiram até aqui como povo miscigenado; no registro literário que antecede cada um dos nove capítulos.

Meu livro está publicado. Como um filho que vem à luz. Que seja bem recebido, é tudo o que no momento desejo. 

Serviço
Título: Prosa à Mesa
Autora: Sonia Machiavelli
Número de páginas: 300
Fotos: Dirceu Garcia
Capa dura
Papel couché
Editora: Ribeirão Gráfica
Onde comprar: Quinta das Flores, Ribeirão Gráfica, Azul Culinária Brasileira, Café Olinto, Casa GCN.
Preço: R$ 120

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