NOSSAS LETRAS

A vida supera qualquer ficção

Na história dessa mãe heroica, que abre e fecha o livro, o autor mostra mais do que aquela que o trouxe ao mundo. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 29/10/2022 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Atribuem a frase que uso para título desta resenha a Clarice Lispector. Andei pesquisando e não a encontrei, embora outras semelhantes sejam constantes em suas entrevistas. De forma menos elaborada costumamos nos deparar com pessoas que dizem: “Minha vida daria um romance.” Em geral elas estão certas, suas existências foram marcadas por tantas experiências, boas e más, que ao chegar à certa idade e fazer um retrospecto percebem o tanto que viveram em termos de quantidade qualidade de emoções. Algumas, porque premiadas com o gosto pela palavra e pelo relato, optam pela biografia e concedem ao leitor o privilégio de compartilhar momentos singulares, irrepetíveis, prova de que toda vida é única e, sim, muitas superam qualquer ficção.

Assim vejo o livro “Crônicas de minha Vida”, de Francisco Antônio de Andrade, o Chico, a mim encaminhado pelo professor e escritor Luiz Cruz de Oliveira. Há algum tempo está comigo, acho que desde julho, mas como me recuso a comentar livro que não tenha lido por completo, esperava uma ocasião para fazê-lo. Deu certo: fiz isso no último final de semana e já digo que foi surpreendente conhecer a história do autor, parecida à de dezenas de brasileiros que nasceram no campo em família de muitos filhos, tiveram infância de extremada precariedade, protagonizaram o êxodo rural dos anos 80, sofreram nas cidades para conseguir dar um rumo às suas vidas. E apesar das incertezas, sonharam em avançar além do que tinha sido permitido a seus pais. Por isso foram vencedores na dura luta que é viver com dignidade e propósito.

“Crônicas de Minha Vida” é mais do que informa o título, pois ao leitor não são oferecidos textos como o gênero faz supor. O livro é na verdade a história de vida do autor, no sentido de que ele volta ao passado, recordando seus primeiros anos na região rural de Ibiraci, e segue com olhos de adulto a trajetória rica de experiências marcadas por férrea vontade de viver, imbatível fé religiosa e o forte sentido social que o leva a se politizar. Acredito que as 187 páginas componham três partes que corresponderiam à infância, juventude e maturidade. Este foi meu jeito de ler. Haverá outros.

O estilo marcado pela simplicidade e objetividade alcança algumas vezes momentos de intensa emoção. Digno de nota é o trecho onde o autor conta que a mãe, ao dar à luz seu terceiro filho, num hospital de Cássia, demora dias a voltar para casa, o que causa preocupação ao pai, incapacitado de obter notícias, e saudade nos dois filhos pequenos. Já estavam então os três angustiados naquela fazenda perdida no meio dos montes, a ‘Fazenda Baixa’, quando veem surgir no alto de um deles a figura feminina com algo no colo. Era a mãe, carregando o recém-nascido. Descera do ônibus na estrada de terra e caminhara durante hora e meia, debaixo de sol, no retorno ao lar. A mim a descrição do autor me lembrou Graciliano Ramos e a gente pobre e sofrida que ainda constitui a maior parte da população brasileira.

Outro trecho impactante descreve o nascimento do irmão cujos lábios leporinos assustaram a família e incidiram de forma negativa na vida da criança. A via crucis em busca de cirurgia reparadora durou nove anos, conduziu mãe e filho a Ribeirão Preto, felizmente levou a médico competente e caridoso. Mas a recuperação foi parcial, o adulto carregou consigo uma voz fanhosa que o estigmatizou por toda a vida. A respeito dessa mãe heroica, que morreu em fevereiro de 2021, escreve o protagonista: 

“Agora começo a entender a valorização, por parte dela, dos altos ares. E fico vislumbrando minha mãe indo embora, conduzida por um pássaro ou nas asas de um belo avião, com acesso ao céu, direto para Deus, sem intermediários.”

Na história dessa mãe heroica, que abre e fecha o livro, o autor mostra mais do que aquela que o trouxe ao mundo. Ele consegue sugerir ao leitor quantas mães ainda estão percorrendo calvários iguais neste nosso país de tantas desigualdades. E entre quedas e aflições, o narrador desta autobiografia aponta para o caminho de superação que alcançou ao se dedicar aos estudos. Especialmente os de filosofia, que cursou no Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Franca; os teológicos, que chegou a iniciar, mas deixou por questão de ordem íntima; os de direito, na Faculdade de Direito de Franca, onde se formou; os da vida sindical e partidária que chegaram como um adendo importante às suas experiências de ser humano incomodado com as injustiças de um sistema que priorizava os mais abonados.

Há muitas histórias dentro da história dominante, a de Chico. Reunidas, elas formam um painel que mostra como a vida, especialmente em nossa região que faz divisa com Minas Gerais, veio se transformando nas últimas cinco décadas. A vida rural, a indústria de calçados, os agricultores que buscaram melhores condições de vida nas áreas urbanas, a instalação das primeiras faculdades, o sindicalismo, o patronato, a ascensão de uma classe trabalhadora que expressava suas inquietações, o papel da Igreja nesse momento em que surge a Teologia da Libertação. Enfim, as circunstâncias que ora nos encolhem, ora nos expandem.

Ian McEwan, escritor britânico, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, falando sobre suas últimas obras de ficção afirmou que tem sentido necessidade de contextualizar personagens nas narrativas, pois todos recebemos, mais ou menos, influências do meio social. Ao ler o  livro do Francisco Antônio de Andrade me ocorreram as palavras do conhecido romancista de língua inglesa, pois a autobiografia “Crônicas de Minha Vida desvela ao leitor não apenas a vida de um indivíduo e de uma família, mas também uma sociedade em constante transformação, que necessita ser lembrada para ser melhor compreendida no presente e, dentro do possível, sonhada em melhores movimentos futuros.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.