NOSSAS LETRAS

Escombros

Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 29/10/2022 | Tempo de leitura: 2 min
Especial para o GCN

“Mulher chorando”, obra de Picasso
“Mulher chorando”, obra de Picasso

Quando atravessou a rua deixou-se nos escombros, era mesmo impossível ser ela mesma e subtrair das perdas alguma razão, a luta de classe o imperialismo o preço do feijão, e não ser julgada pelo que não pode realizar, mas pelo que fez com o tinha nas circunstâncias que deus lhe dera, seu passado comprimido e comprometido numa versão ingênua usa para agradecer dos homens a miséria condescendente, e movendo-se na certeza de pensar diferente concluía desesperada: a soterrada souela.

Suelen precisa decidir o entra-não-entra. Entrou, mas deixou-se na calçada espiando, cópia madura de si porque sofrida ou a que realmente era, pobre por natureza inviável projeto de mulher sensitiva que prefere ser quem não é a ser notada e ter que decidir com um segundo de antecedência, antecipar-se, olhar de cima e de baixo a situação, estar constante seria a última vez a reclamar daqui para sempre tudo seria diferente.

Finalmente ia falar com o Alexandre de igual para igual, feito homem, sabe? o adulto da relação como naquela frase “seja você mesmo imitando quem gostaria de ser”, e pronto, revestida desse lixo tóxico subproduto machista na pastelaria com o ex-colega de quarto, ex-namorado, ex-marido, ex.amigo. Tudo sob escombros, mas ex-pai não existe, nem no dicionário quem dirá do meu filho, nunca.

Tudo bem que diria exatamente o oposto, não quero me expressar como a tonta de sempre disposta a perdoar só porque eles diriam “eu te amo, sério de verdade” (...) Não, não. Agora Alexandre ouvirá a vigiada na calçada que se ergue outra, a versão Sulen inventada, melhor sucedida mesmo soterrada, dura com os homens a tirar deles algum sustento, o certo direito duvidoso impreciso, o verso do inverso. 

Viu-se na calçada mais uma vez, recomposta espiando-se cheia de si imaginada (...) tomou fôlego e antes de dizer “vai pro inferno” e negar a vida que passaram juntos, suspeitou que Alexandre também pudesse ter-se imaginado forte e seguro e representando seu papel da melhor forma, talvez aquele na sua frente, fosse apenas o fantasma do homem embaixo dos seus próprios escombros, a sombra de um rato medroso assustado fingindo-se leão. Seja como fosse, e exatamente por isso talvez com certeza, entre eles nunca foi possível acessar a realidade. Não aceito mais impossibilidades, disse para si mesma antes de dar um atrás outra vez para voltar ao seu corpo soterrado.

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2 COMENTÁRIOS

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  • Teresa Cristina
    01/11/2022
    da série - LER É LIDA! ..de vitimas & e algozes de si mesmos... \"(...) Não, não. Agora Alexandre ouvirá a vigiada na calçada que se ergue outra, a versão Sulen inventada, melhor sucedida mesmo soterrada, dura com os homens a tirar deles algum sustento, o certo direito duvidoso impreciso, o verso do inverso. \"
  • Maria João
    31/10/2022
    Esplêndido texto! Por pouco não SouEla. Por pouco... Um forte abraço, Baltazar!