NOSSAS LETRAS

Um encontro

Daquele dia em diante, aprendi que podemos ter demônios internos que devem ser dominados por nós mesmos. Leia a crônica de Mariana Porto.

Por Mariana Porto | 08/10/2022 | Tempo de leitura: 2 min
Especial para o GCN

Nunca me esqueço. Uma vez, voltando da Inglaterra, uma jovem mulata sentou-se ao meu lado. Nos minutos que antecediam a decolagem ela se virou pra mim e disse: "Você tem medo de turbulência?" Percebi que ela estava nervosa e segurava um terço com medalhinha de São José entre os dedos.

Sendo de São Paulo, logo reconheci aquele sotaque nordestino. Me sentindo comovida pela insegurança e medo que transbordavam daqueles olhos, comecei a puxar conversa. Confesso que imaginei que ela fosse só mais uma entre tantos brasileiros que fogem do Brasil se submetendo a trabalhos poucos qualificados na Europa em troca de uma vida menos miserável e mais digna.

Papo vai papo vem e eu muito curiosa perguntei pra nordestina: O que você faz aqui? Mora? Está a passeio? E ela me respondeu: “Não estou a passeio, vim para a Escócia terminar meu doutorado em Ciências Políticas”.

Naquele momento o avião já estava decolando e a sensação de ter perdido o chão foi literal e figurativa ao mesmo tempo. Confesso que até hoje não consigo discriminar se aquela sensação de perder o chão fora causada apenas pelo deslocamento de altitude ou por aquela resposta que certamente atravessou algum lado muito oculto dos meus preconceitos mais obscuros.

Perguntei: “Você não tem vontade de se mudar para cá? A vida aqui na Europa é tão melhor.” E ela me respondeu:  "Mulher, e de que adiantaria meus esforços, minha bolsa de estudos e todo meu medo de avião senão para tentar mudar a realidade do meu país? Quero viver é no Brasil e fazer dele uma Europa pra ser vivida".

As luzes do avião se apagaram. Ela fechou os olhos e começou a rezar e eu, daquele dia em diante, aprendi que podemos ter demônios internos que devem ser dominados por nós mesmos. Desde então, reconheço que podemos carregar preconceitos sem nos darmos conta no ordinário da vida.

Nunca me esqueci desse encontro. Diferente dela, nunca tive medo das turbulências dos aviões. Diferente de mim, ela nunca teve medo das turbulências da vida.

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