NOSSAS LETRAS

Mauro-Objeto

Mauro não frequentava as aulas de história, não aprendeu que o presente é a soma das permanências históricas. Leia o texto de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 01/10/2022 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Logo de manhã, fui votar. No mesmo lugar de sempre, a escola CEDE onde estudei é zona eleitoral de muitos conhecidos que se reencontram de 4 em 4 anos. Custei lembrar, mas aquele era mesmo o Mauro. Tinha ainda ares de adolescente, embora calvo. O semblante convicto de que o seu candidato mudaria o país no dia seguinte às eleições dava a ele um verniz de inocência cruel, que só as crianças têm. Mauro não frequentava as aulas de história, não aprendeu que o presente é a soma das permanências históricas, aquilo que não muda apesar do tempo. Quando éramos da na mesma classe, ele não frequentava a biblioteca e só tirava a nota que precisava para ter aprovação. Na fila para celebrar a democracia, fui lembrando dos colegas da 8ª série C.

Enquanto esperava poder votar, tracei as linhas dessa história fantasiosa envolvendo Mauro que não tem esse nome de verdade. Imaginei “burrice” como doença crônica devastando gerações, imaginei Mauro morrendo de burrice, imaginei burrice penetrando minhas veias e tive calafrio ali na fila da votação que não andava, eu devia ter ido mais cedo votar nos candidatos da esquerda.

Nos anos 80, Mauro foi diagnosticado com uma doença rara incurável, os médicos disseram que ele tinha se tornado uma página em branco. Depois de muita resolução a família decidiu colocá-lo numa câmera criogênica. O garoto de 12 anos acordaria quando a medicina pudesse reanimá-lo com saúde, no futuro. Nossa esperança, posta sempre no porvir, resvala na perspectiva de que o passado é ruína sem resgate. Basta uma situação sem remédio, atormentas nos distraem de sermos de fato desejo sobre ruínas. 

Como seria despertar 40 anos mais velho, mas ainda adolescente? Mauro acordou faminto numa manhã de terça-feira pedindo quibe assado. Os pais já tinham morrido, nenhum parente assistia seu renascer. Por sorte essa empresa de alta tecnologia ligada ao subcomitê “Santos dos últimos dias” do Vaticano reivindicara ao Estado a guarda perpétua do experimento que ficou conhecido como Mauro-Objeto e, a partir desse primeiro dia, o sujeito tornou-se propriedade privada da remanescente Companhia de Jesus.

Sorte grande é pertencer, Mauro descobriria que é melhor ser dominado que dominar, amar que ser amado. Melhor perder a vida procurando respostas que morrer convicto de muita teoria. O amor pode ser a última fronteira da filosofa, esse desfiladeiro de perspectivas que nos esvazia de tanto saber. Se quem pertence recebe atenção e cuidados, pertencer é usufruir da propriedade que o possui. A maioria de nós está à deriva em busca de pertencimento, um poder maior que nos resgate e dê sentido nas direções tomadas.

Mauro-objeto, com a saúde restabelecida, agora é notícia. O adolescente de 52 anos tem mais responsabilidades que privilégios. Para atender a demanda de cientistas que estudam o caso bem-sucedido de criogenia, Mauro passa a maior parte do tempo numa bolha entre pesquisadores. O convívio com pessoas normais, de hábitos comuns que não pensam a vida, pessoas que recebem a vida com gratidão, é mínimo. Até a arrumadeira, a passadeira e a cozinheira da casa-laboratório são especialistas com mestrado em dobrar lençóis, doutorado em engomar e passar casimira e linho e PHD em culinária tailandesa.

Sendo impossível fazer amigos sem que a relação ganhe contornos de nível superior, Mauro preencheu um formulário requerendo “amizades aleatórias sem conflito” e se inscreveu numa escola pública, atitude a que seu tutor master teria dito “se prefere morrer de novo, tudo bem”. Então no início da semana seguinte, Mauro começou um experimento dentro do experimento que era estar vivo de novo depois de um sono de 40 anos: o que seria ter amigos de verdade? como seria a socialização de um adolescente de 52 anos? a escola teria acompanhado a evolução dos costumes forçada pela revolução tecnológica? O objeto-mauro sobreviveria ao ensino médio?

Ali está o muro da escola com seus arames farpados, à direita câmeras de segurança e à esquerda árvores arrancadas antes da primavera sem motivo que justifique o dano. O calor irradia ondas de 41 graus sobre telhados de amianto. É hora do intervalo, inspetores gritam “não façam isso” para um grupo de meninas que se fotografam simulando uma briga. As salas de aula só abrem por dentro. Professores ensinam a importância da obediência em primeiro lugar. Lousa e giz, cadernos para copiar matéria, a educação bancária com ares de progressão continuada forma operários alienados para todo tipo de fábrica; senso crítico nenhum, todos obedecem para ganhar crédito. Tudo no devido lugar, o velho Mauro está em casa.

Mauro que não se chama Mauro, meu colega de classe na 8ª série C, acabara de votar e passa por mim. Saio do devaneio da ficção para ser reconhecido apesar da minha barba grande e prateada pelo tempo. Num segundo de olhar cruzado, pude sentir a crueldade da criança que envelhece cruel. O cidadão me cumprimenta fazendo arminha com os dedos polegar e indicador. Ignoro a ruína onde estamos desejando novos ares para a democracia no planeta. 

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