NOSSAS LETRAS

A inspiração que vem das árvores

Gosto de pensar que o apreço pelo verde nasceu comigo, menina que se distraía com as florezinhas das calçadas, aquelas bem simples e rústicas. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 24/09/2022 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Gosto de pensar que o apreço pelo verde nasceu comigo, menina que se distraía com as florezinhas das calçadas, aquelas bem simples e rústicas, amarelas ou roxas, que nada pedem de cuidados e no entanto sobrevivem entre pedras. Aquilo me surpreendia. Fui crescendo e admirando flores baldias e outras plantadas em canteiros no quintal de casa, geralmente margaridas e dálias de cores diversas que mais não vejo. Quando abriram floricultura em Franca e vi orquídeas pela primeira vez, embaladas em caixas de plástico transparente, fiquei deslumbrada.

Assim fui caminhando pela vida, deixando sempre aberto um espaço para acolher flores e árvores. Hoje posso dizer que minha relação com elas alçou à paixão. Não a ponto de manter colóquios, como falam sobre o então príncipe e agora rei Charles lll, mas naquele nível em que, havendo ponta, desenrolo novelo inteiro. Isso se meu interlocutor gostar do assunto, claro, pois já conheci gente que se aborrecia logo às primeiras menções ao tema. Mas, a se supor pelo número de internautas que como eu gostam de postar e curtir fotos de árvores e flores, há mais seres que se deleitam com elas do que aqueles cuja alma se entedia.

De início eu achava que era apenas a beleza que me atraía. Mas como toda pessoa que desenvolve interesse genuíno por alguma coisa, busquei além do olhar. Aos poucos descobri a importância incomensurável do verde em nossa vida ao atinar com o fato de que nós, animais, representamos apenas 0,3% da biomassa, enquanto elas, os vegetais, constituem 85%. Como contar a história da Terra sem levar em conta os habitantes mais numerosos? E, no entanto, é isso que vem acontecendo, com maior intensidade desde a revolução industrial, ou melhor, talvez até mesmo antes, ainda que pareça incoerente: desde o século das luzes.

Nossa visão das plantas como figurantes menores no palco da vida foi se tornando completamente equivocada. Nosso vaidoso protagonismo de gente civilizada embaçou a verdade sobre a importância desses outros seres vivos dos quais depende a existência no planeta. Entretanto, se nos despirmos de nossa convicção de que o mundo é campo de ação apenas dos humanos, notaremos a força das plantas que estão por toda parte entrelaçando-se conosco de muitas formas, das raízes mais profundas ao mais tenro broto. Não ver isso, ou pior, ignorar essa verdade, acreditando que já nos encontramos acima da natureza, é um dos perigos mais graves para a sobrevivência de nossa espécie, como sugere Stefano Mancuso, autor do instigante A planta do mundo, onde conta:

"Um dia perguntaram ao compositor inglês sir Edward Elgar (1857-1934) de onde vinha sua música. A resposta foi: 'Minha ideia é que há música no ar, música ao nosso redor, o mundo está repleto dela e a qualquer momento uma pessoa pode obter toda música de que precisa'." Para Mancuso, “o mesmo acontece com as plantas: como a música para Elgar, elas estão em todos os lugares ao nosso redor e, para escrever sobre elas, basta ouvir suas histórias e contá-las”.

Nesta altura, é quase impossível para nós, falantes do português, e alfabetizados, não nos lembrarmos de Olavo Bilac em seu soneto eterno que aprendemos a declamar nos livros escolares do ginásio e começa assim: “Ora, direis, ouvir estrelas?” Como para os astros, também para as plantas há que se ter ouvidos capazes de as ouvir e entender que elas “constituem a nervura, o fundamento, o mapa com base nos quais se constrói o mundo em que vivemos”, na viva observação do criador da neurobiologia vegetal.

Os vinte e dois autores do livro Contando quanto uma árvore conta, lançado na última quarta-feira (21) e organizado por Elaíse Mello Barbosa (coordenadora do Grupo Verdejar) e José Lourenço Alves (presidente da Academia Francana de Letras), pertencem ao grupo seleto de seres humanos capazes de ouvir árvores, de serem afetados pela emoção que elas despertam. Suas narrativas confirmam isso.

Parabenizo Adriana Mendonça Ribeiro de Souza, Ana Claudia Gomes Querino, Ana Laura Cunha Barci, Antonio Baltazar Gonçalves, Ari Pedro Balieiro Junior, Célia Conceição Fontes Parzewski, Cirlene Aparecida de Pádua Teixeira, Denis de Oliveira Carvalho, Janaína Lucas dos Santos, José Valdair Costa Rios, Leliana Fritz Siqueira Veronez, Lilian Tosi de Melo, Maicon Melito de Souza, Maria Helena Zeotti, Maria Lídia Borges Machado, Maria Zenaura de Souza Fortes, Mateus Domingos Mendes Silva, Perpétua Amorim, Rejane Aparecida Genaro, Sirlei Aparecida Ruela de Oliveira, Terezinha das Graças Morais Souza, Vinícius Rustom. Cada um deles, 15 mulheres e 7 homens, criou ficção interessante, comovente e reflexiva que nos permite desvelar a poética  relação de um ser humano com um ser vegetal.

Cumprimento pelos textos de apresentação Elaíse Maria de Mello Barbosa, José Lourenço Alves, Regina Helena Bastianini e Maria Conceição Alves de Lima. Todos reconhecidos pela seriedade intelectual com que tratam nossas língua e literatura e pelo respeito com que olham a natureza.

Não poderia existir forma mais esperançosa para celebrar o Dia da Árvore, a entrada da Primavera. Que a publicação deste livro pela editora Artefato represente marco a partir do qual futuras primaveras sejam saudadas com a escrita de francanos sensíveis ao verde neste século de tanta devastação.

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