NOSSAS LETRAS

O escritor e a literatura

Nesses momentos penso que a vida é bela se nos deixamos afetar pelo que transcende o banal cotidiano. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 17/09/2022 | Tempo de leitura: 6 min
especial para o GCN

Surpreendida há duas semanas por postagens do presidente da Academia Francana de Letras, Dr. José Lourenço Alves, liguei para o escritor Luiz Cruz de Oliveira e pedi audiência. Será que poderia me receber no seu apartamento, para que eu pudesse conferir as novidades mostradas nas imagens?

Ele achou graça. Não sendo adepto das redes sociais, sem página no Facebook, pouco frequente no WhatsApp da própria AFL, sequer havia visto as imagens. Contei-lhe sobre minhas impressões. Então marcamos a visita para a tarde de uma quarta-feira, quando ele estaria mais livre, pois é homem de muitas ocupações, todas ligadas às Letras. Quando não está escrevendo, está lecionando. Entre uma atividade e outra, entrega-se ao sonho, cria, eleva a literatura, sua grande dama, que corteja dia e noite.

Ao chegar à Rua do Comércio, onde ele reside há alguns anos, precisei deixar o carro a uns duzentos metros de distância. No trecho mais próximo à praça Barão da Franca o trânsito é interditado em razão do estreitamento da via, talvez a mais antiga da cidade. Enquanto caminhava ia pensando numa crônica de nosso fecundo escritor sobre sua infância de menino pobre que ajudava o pai a entregar leite de porta em porta. Um litro em garrafas gordas, de vidro, pesadas, pois os anos eram os da década de 50 e o processo de pasteurização demoraria a chegar por aqui. A carroça do leiteiro fazia parte da cena matinal urbana.

No texto pungente o menino sente frio, pois uma chuva incessante fustiga a cidade e ele está exatamente naquele trecho de rua francana por onde caminho. As imagens continuam me habitando ao chegar ao prédio de portão gradeado onde o porteiro me espera. Subo pelo elevador, vou resgatando detalhes e especialmente o final da história do menino e seu trabalho difícil. O protagonista, transcorrido mais de meio século, morando então num décimo andar, olha da sacada, faz um retrospecto de sua vida, e avista a via onde a chuva o pegou em cheio no passado remoto. Resgata de modo conciso (por conta do gênero), mas profundo (por causa da emoção) sua bela história de ser humano que precisou enfrentar intempéries diversas enquanto ia se construindo como pessoa, cidadão, ser político, mestre, escritor.

O elevador para no andar marcado e interrompo minhas lembranças, empurro a porta.  Deparo-me no hall com o escritor sorrindo, gestos largos, braços abertos para o abraço. Entramos naquele apartamento claro, ventilado, mas de simplicidade monástica. Móveis, só os estritamente necessários. Adornos nenhuns. É o estilo do dono, que vem sendo apurado sem cessar e se caracteriza pelo que lhe parece básico, simples, importante. Nada de detalhes, objetos supérfluos, inutilidades domésticas, coisas que dispersem a atenção.

O essencial está nos livros espalhados por estantes e armários que serviam de guarda-roupas para o proprietário anterior. Encontra-se nas páginas datilografadas de obras já publicadas e outras que ainda aguardam novas revisões e, talvez, se o perfeccionismo não atrapalhar, virão à luz um dia. Está também nas pilhas de volumes que ele alojou num canto e me mostra com entusiasmo, cada um com sua história. São livros dele (que tanto já escreveu este homem!) e de outros francanos. O essencial está também na sua cabeça, virando ficção, pois ele me conta que vem trabalhando no perfil de “personagens de um conto que se passa lá em cima, além das nuvens, num avião.” Descreve a protagonista e outros personagens. Me faz embarcar neste voo de ponte aérea com final inusitado.

Pergunto-lhe sobre as fotos que vi no celular e ele me conduz por um corredor a um cômodo invadido pela forte luz que entra pela larga janela. Todas as paredes estão forradas. Destaca-se um pôster enorme, assinado por Dirceu Garcia, fotógrafo do GCN que o acompanhou numa sessão para capa de um de seus livros, Chico Franco. Então rememoro aquela aventura de anos atrás. Cruz alugou terno de linho branco, bengala, chapéu; vestiu-se como imaginou seu personagem; caminhou pela praça Nossa Senhora da Conceição chamando a atenção do povo que ali fervilhava num sábado e não reconhecia no anacrônico senhor o icônico escritor francano.

Na época lhe dissemos, Dirceu e eu, que ele levava jeito de ator. Ultimamente, vendo-o declamar poemas longos sem tropeçar em uma palavra sequer, e com tanta emoção, concluo ser verdadeira aquela nossa assertiva: seu dom para atuar é forte ou talvez todos os ficcionistas sejam assim, transformem-se em personagens para lhes dar vida enquanto as palavras capturam as criaturas fixando-as em textos imortais.

Ao redor da foto de Chico Franco há dezenas de outras de todos os tamanhos- lançamentos de livros, amigos que já morreram e outros que continuam na luta, exposições, acontecimentos em que câmeras flagraram Luiz Cruz  naquilo a que vem dedicando sua vida. Um poema de Ivani Marchesi, incrustado em metal e celebrando o escritor, destaca-se junto à porta. A única exceção entre as fotos recorrentes no tema são as familiares: mãe, pai, filhos. E as do time de futebol a que pertenceu na juventude e para o qual abriu numa das paredes nicho expressivo.

Olho todas as joias daquele tesouro. Cruz conta histórias, vai a outro cômodo e volta, me traz velho recorte de jornal, depois uma revista antiga, e diz que não consegue mais enxergar como antes. É sua única queixa. Decido fotografá-lo naquele ambiente, apreender sua fisionomia iluminada a traduzir a pulsante felicidade de quem está falando sobre algo que ama, que o motiva, que o inspira.

Fico mais algum tempo ouvindo-o comentar o poema de Vinícius de Moraes que declamou na Sebo Almanaque há algum tempo; a importância da Ribeirão Gráfica e dos espaços literários do Comércio para autores que começavam a publicar por aqui nos anos 80; a evolução de seus alunos que andam entendendo afinal o que é interpretação de texto. Também trocamos impressões a respeito de crítica literária; de nossos autores preferidos; de poetas e prosadores francanos que apreciamos. Quando me dou conta, a tarde está indo embora. Faço menção de me despedir, ele se levanta e me acompanha. Descemos pelo elevador registrando a segurança do edifício. Deixo para trás o portão de ferro mas não o escritor ali parado.

Volto-me instantes depois para um aceno de mão e sigo rumo ao estacionamento com um soneto de Camões na cabeça. É que me ocorreu de repente que seus quatorze versos traduzem algo que gostaria muito de dizer mas não consigo verbalizar: o estado de plenitude do escritor que vai se transformando na própria literatura em razão da paixão que lhe dedica: 

“Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.

Vivi uma tarde inesquecível, com toda força semântica do vocábulo. A gratidão enraizou-se profunda em mim pela experiência rica e singular. Mais uma de algumas que a existência tem me oferecido ultimamente. Nesses momentos penso que a vida é bela se nos deixamos afetar pelo que transcende o banal cotidiano.

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3 COMENTÁRIOS

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  • Márcia de Oliveira
    19/09/2022
    Bela homenagem, visualizei cada detalhe! Sônia, vc é ótima
  • Márcia de Oliveira
    19/09/2022
    Bela homenagem, visualizei cada detalhe! Sônia, vc é ótima
  • Márcia de Oliveira
    19/09/2022
    Bela homenagem, visualizei cada detalhe! Sônia, vc é ótima