NOSSAS LETRAS

Missão cumprida

Analisando de fora para dentro, a imagem da soberana exibia simbolismos constantemente decalcados na memória coletiva. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 10/09/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Ao subir ao trono aos 25 anos, Elizabeth Alexandra Mary poderia ter escolhido qualquer um de seus três prenomes. Preferiu o primeiro, entre algumas razões porque admirava sua ancestral, filha de Henrique VIII e Ana Bolena. Tornou-se assim Elizabeth, a Segunda. Vivendo quatro séculos depois, em tempo completamente diverso, com a monarquia transformada, pois aos reis já não cabia governar, ela soube se reinventar de forma sutil para não se fossilizar. Mas, intuitiva, manteve o visual a fim de oferecer ao seu povo uma imagem confiável e sólida por toda a longa vida, que chegou ao fim na tarde de quinta-feira, 8 de setembro. Desde então todos os noticiários do mundo estão centrados neste fato.

Morreu lúcida e atuante aos 96 anos, em Balmoral, na Escócia, onde na segunda-feira tinha recebido a visita protocolar da nova primeira-ministra da Inglaterra, Liz Truss. Cercada da admiração e do respeito não só de seus súditos, mas de todos os humanos que acompanharam sua história desde o já longínquo 1952, quando sucedeu a seu pai, ela jurou no discurso de coroação que estaria todos os seus dias a serviço de seu povo, fosse sua vida curta ou longa. Cumpriu exemplarmente a missão.

Soberana do Reino Unido e outros países durante sete décadas completadas no começo deste 2022, a Rainha empenhou-se a cada minuto de sua existência em engrandecer não só a Inglaterra, mas também a comunidade britânica de nações, composta por países independentes, ex-domínios ou ex-colônias que em sua maioria lhe professavam fidelidade.  

Sua tarefa não foi fácil, porque o período de quase um século que viveu foi marcado por guerras, pela redução do tamanho do Império, por crises políticas, sociais, econômicas. Embora isso nunca tenha sido de sua alçada resolver, impactava seu trabalho. Por outro lado, houve o avanço das viagens espaciais, com a chegada do homem à Lua, o que a maravilhou; e as transformações extraordinárias graças às novas tecnologias que criaram o mundo digital. Ela soube tirar partido disso, aderindo aos ganhos das Ciências, assim como antes entendera o poder da comunicação ao acatar sugestão de seu marido para que a transmissão de sua coroação fosse transmitida ao vivo para milhões ao redor do mundo. E, bem depois, para participar de um documentário e mostrar aos ingleses como vivia a família nos espaços palacianos. Era uma forma de aproximação com o povo.

Contrariamente à rainha homônima, que não se casou e nem teve filhos, ela se uniu ao seu amor de infância, um príncipe grego e lindo, com quem atravessou 73 anos e teve quatro filhos que lhe deram oito netos. Isso acarretou à vida pessoal previsíveis terremotos e alguns infortúnios que ela lutou bravamente para manter sob discrição. Mas os implacáveis tabloides ingleses sempre acabavam desvelando mais as horas de sombra que de luz, de agonia que de êxtase, de turbulência que de quietude. Foi a capacidade de viver de forma plena seus sentimentos, no recôndito de seu ser, que a levou a refletir sobre a existência como uma filósofa antiga ou uma psicóloga contemporânea. Ao afirmar em seus belos e consistentes discursos que “o luto é o preço que pagamos pelo amor” ou “a vida é feita de primeiros encontros e despedidas finais”, ela mostrava que sua observação sobre a existência humana repousava em incomum sensibilidade.

Centenas de líderes ao redor do mundo se pronunciaram nas últimas horas após seu falecimento. E nas mensagens curtas ou extensas algumas palavras se repetiram, como num tácito consenso. Disposição. Comprometimento. Liderança. Sinceridade. Tolerância. Sabedoria. Constância. Consistência. Compaixão. Coragem. Dignidade. Discrição. Equilíbrio. Respeito. Honra. Poucos destacaram sua resiliência, mas parece que essa condição foi imprescindível para que permanecesse como um símbolo de unidade, de algo permanente para seu povo.

Analisando de fora para dentro, a imagem da soberana exibia simbolismos constantemente decalcados na memória coletiva: a roupa de corte bem definido, os ombros marcados, o comprimento abaixo dos joelhos, os casacos, a bolsa de alça dura, o corte de cabelo, o chapéu, a mesma cor de esmalte, o trio composto por colar, brincos e broche. No campo, os lenços de seda cobrindo a cabeça. Nas cerimônias, a coroa. Essa imagem física, que pouco variava, transmitia segurança para as gerações que temiam as mudanças, embora as desejassem.

Porque os tempos mudavam, as guerras irrompiam, a Irlanda convulsionava, atentados horrorizavam, novos modelos de família emergiam, grupos contra a Monarquia insurgiam-se, as colônias se libertavam redesenhando o império, catástrofes naturais ameaçavam, incêndios destruíam palácios, ministros se sucediam; mais recentemente o Brexit e a retirada da Comunidade Europeia.

Nada era permanente, mas ela continuava no mesmo lugar que construíra para si, o de impávida servidora pública de seu país, presença aguardada no parlamento composto pelas duas Câmaras- a dos Lordes e a dos Comuns, numa mostra de como dera certo a evolução da Monarquia absolutista dos tempos da sua homônima para a Monarquia democrática implantada no começo do século XVIII. Seu papel político abrangia grandes áreas, com funções constitucionais significativas, sendo representante ativa de sua nação perante o mundo. Sua popularidade pessoal a tornara um dos ícones notáveis que remetiam à cultura britânica.

Enfim, era uma unanimidade que soube se sustentar até o fim, desmentindo a adjetivação de burrice carimbada por um brasileiro. O fato de que até no Brasil desses dias violentos e trevosos as hordas de ódio calaram sua raiva por algumas horas nas redes sociais para homenagear a Rainha, significa muito.

Se o reinado de Elizabeth, a primeira, foi associado ao ouro   graças a conquistas e desdobramentos, o de Elizabeth, a segunda, pelo desempenho impecável da rainha como servidora pública, talvez possa ser vinculado à platina, um metal também precioso e bem raro.

Em tempo. Dois filmes muito bons para rever são A Era de Ouro, sobre Elizabeth l, e A Rainha, a respeito de Elizabeth ll.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.