NOSSAS LETRAS

Ajuda

Meus ombros caíram sobre o corpo, senti toda a culpa de uma vida se esvaindo. Eu quero ajuda, eu quero viver! Leia a crônica de Júlia Gonçalves.

Por Júlia Gonçalves | 03/09/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Cheguei em casa bêbada, o que não era surpresa. Não sei bem como começamos a discutir, de repente estávamos na varanda, eu sentada num sofá velho que servia de cama pros gatos, ele em pé fumando o primeiro cigarro da caixa. Fernando estava presente, mas era como se não estivesse, sempre discreto, sabia o seu lugar. Meu pai falava dele mesmo, espelhando suas experiências em mim, ele sabia que éramos iguais. As palavras saiam firmes de sua boca, o pensamento completo palavra por palavra, signo e significado. Falava de si, falava de mim. O som das suas provas me tocava o rosto e secavam as lágrimas que não cessavam de cair. Mas por que eu chorava tanto? Por que não falava?

Minha garganta estava seca talvez de tanto engolir as palavras, talvez de tanto álcool. Às vezes, estar entorpecida era maravilhoso, o corpo a alma e o espirito dormentes, anestesiados. O sono de um bêbado atormentado é pesado, e cruel. Acordar no outro dia é sempre um pesadelo. Naquele dia eu não queria dormir, eu só queria falar, as lágrimas escorregavam do meu rosto e caiam no chão pesadas carregando em si as palavras que eu queria gritar e não conseguia. Por que é tão difícil falar quando se tem tanto a dizer?

Os gatos nos rodeavam, será que eles estavam ouvindo os gritos da minha alma? Tonico, o gato preto da bruxa, já me salvara de noites angustiantes. Ele sempre deitava sua barriga quente no meu pescoço, sei que fazia isso mais por ele do que por mim, mas eu me contentava. Assim eu dormia com o seu cheiro e ouvindo seu ronronado que parecia uma canção de ninar. Todos me olhavam. Meu pai, Fernando, os gatos. Apenas eu não conseguia me enxergar. Onde eu estava? O que estava fazendo? Pra onde estava indo? O que eu-você quer?

Filha, o que você quer? A voz firme e os olhos cheios de expectativas do meu pai me atravessavam. Eu não sabia exatamente o que queria, estava letárgica há tanto tempo, há anos. Dormindo sonhava em viver, acordada só me fazia morrer. O que você quer Vitória? Eu queria tantas coisas. Uma rotina, trabalhar, ser psicóloga para ser mais exata. Queria fazer mestrado, doutorado. Queria falar sobre minhas séries e músicas prediletas. Queria escrever. Queria um lar, um lugar meu. Queria falar de mim, da minha vida, da minha história. Mas que história menina tola? Se eu conseguisse ao menos levantar-me da cama pra tirar as roupas do chão, limpar meu quarto, a casa e o jardim. Mestrado, doutorado, lar, vida... O que você quer filha, me diga Vitória? As palavras estavam dentro de mim, prontas para serem vomitadas.

Já estou cansada de me sentir ansiada, enojada de mim mesma. Vamos garota, você sabe o que dizer, não é tão difícil, não pode ser mais difícil do que viver assim miseravelmente. O que você quer Vitória? Com o último cigarro da caixa na mão meu pai me olhava fixamente, amor e segurança emanavam dele. Sou disfuncional, ele sempre me dizia. Mas eu sentia tanta certeza nele naquele momento, ele já sabia o que eu iria dizer, ele já sabia... O que você quer Vitória?

Fechei meus olhos com tanta força, respirei fundo e senti meu corpo firme, abaixei a cabeça olhando pros pés que se retorciam de medo. Pensei em tudo o que sobrevivi até ali, com certeza não era a vida que eu queria. Garota você sabe o final desse filme, você já o viu acontecer por anos e anos. Não, eu não quero ser assim, eu não posso ser assim, não é o roteiro que eu quero pra minha história. O que você quer Vitória?

Eu quero viver, quero amar, quero ser amada. O que você quer Vitória? O que quer de verdade? Eu quero viver.

Com o mínimo de força que me restava levantei a cabeça, abri as mãos que estavam com as marcas das unhas grandes e vermelhas nas palmas. Respirei bem fundo como se limpasse a palavra antes de materializa-la. Abri os meus olhos e ainda chorando te vi, parado sorrindo com olhos, quanta ternura, me senti abraçada por seu amor. O que você quer Vitória? Com um grão de coragem respondi, AJUDA!

Meus ombros caíram sobre o corpo, senti toda a culpa de uma vida se esvaindo. Eu quero ajuda, eu quero viver! Não pensei em como faríamos isso, mas eu sabia que agora não estava mais sozinha. Eu continuava com medo, mas agora não estava sozinha. Eu não estava sozinha. Lembrei-me de quando era pequena e meu pai me ensinou a boiar na piscina, eu deitava sobre a água e ele me segurava pra não afundar. E de novo ele me segurava e eu não ia afundar.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Tiago
    03/09/2022
    Verdade. Tipo o cara que tentou matar o bolsonaro ne?