NOSSAS LETRAS

Leopoldina: protagonista e não espectadora

Que as chamas da destruição à qual assistimos nos dias atuais não reduzam a cinzas outras memórias. Porque sem memória não se forma identidade. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 03/09/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Leopoldina de Habsburgo nasceu em 1797 no palácio de Schombrum, em Viena. Pedro de Alcântara, em 1798, no palácio de Queluz, em Lisboa. Se o primeiro até hoje faz sombra a Versalhes, o segundo é dos mais modestos de Portugal. Mas, naturalmente, não foram apenas os espaços em que ambos viveram parte importante de suas vidas os responsáveis pelos perfis tão diferentes deste casal cuja história tem sido mais relembrada no bicentenário da nossa independência.

Contam os biógrafos que Pedro, com seu temperamento hiperativo, sentia dificuldades em se concentrar nos estudos e por não se submeter a regras sua formação ficou inconclusa. Leopoldina, ao contrário, seguia horários rígidos e era cobrada constantemente em seus estudos, desde os seis anos. Começava sua jornada às sete da manhã e tinha aulas o dia todo, só se interrompendo para três refeições básicas. Ele tinha uma mãe que foi ficando cada vez mais louca; ela, uma madrasta esclarecida que se empenhou na educação dos enteados.

Quando a família real portuguesa fugiu às pressas de Lisboa porque Napoleão Bonaparte já batia à porta, em 1808, Pedro completara dez anos e era um menino mais curioso pelas coisas da vida que consciente de suas futuras obrigações como herdeiro. Diferente dele, Leopoldina já havia se iniciado nos estudos de história, geografia, ciências e línguas estrangeiras. Aos dezoito anos, enquanto ele se esbaldava como adolescente irrequieto pelos terreiros cariocas ao redor do paço de São Cristóvão, ela se tornava fluente em idiomas, convivia com o compositor Schiller, conversava com Goethe, ia ao teatro, escrevia e lia, lia muito: Cervantes, Shakespeare, La Fontaine, Voltaire e Rousseau, os dois últimos ainda que proibidos. E lia Humboldt, cuja obra sobre mineralogia a inspiraria a conhecer a beleza e o mistério das pedras.

Quando o marquês de Marialva, encarregado de negociar o casamento de Pedro com Leopoldina chegou à Áustria, em 1816, encontrou a jovem em meio a tantos livros que pensou sobre a forma como ela os levaria para o Brasil. Seriam os livros que salvariam a princesa, quando, já no Rio de Janeiro, viu-se submetida às humilhações do marido, que ostensivamente presenteava a amante favorita, Domitila de Castro, futura Marquesa de Santos, com títulos e mansões. Mas essa é outra história, que viceja mais é nas minisséries, novelas, sambas-enredos e imaginário brasileiro onde a princesa vive como o frágil vértice do célebre triângulo.

Sua trajetória revela muito mais do que uma mulher traída. Refinada, culta e inteligente, ao deixar a Europa em 1817 e atravessar o oceano para se casar, mal sabia que se tornaria, cinco anos depois, uma estrategista política fundamental no processo de Independência de um país que corria o risco de voltar a ser colônia. E a primeira imperatriz do Brasil.

Criticada na Corte por portugueses e brasileiros ignorantes que dela riam por vê-la sempre a ler, o que consideravam excêntrico, foi reconhecida em seus valores por poucos, dentre eles José Bonifácio de Andrada e Silva, cuja envergadura intelectual era por demais reverenciada em toda a Europa. Como professor e diplomata havia vivido por duas décadas no Velho Continente, privando da amizade e confiança de pessoas ilustres.

Bonifácio, que contava então 60 anos, entendia que o caráter complexo de Leopoldina, oscilando entre força e fragilidade, resultava de uma educação calcada na obediência, na moral religiosa e na política de casamentos, usual para aumentar territórios e se manter nos centros de poder, acima de tudo. Se ela havia se casado com Pedro para atender aos interesses do império dos Habsburgos, sua irmã Maria Luísa fora levada pelo mesmo motivo a se unir ao imperador Napoleão Bonaparte. Tornava-se então até curioso que a independência de nosso país fosse algo pelo qual ela lutasse, já que sempre vigiada e governada, como outras princesas, não havia conseguido desenvolver completamente sentimentos de autonomia e vontade própria. Mesmo assim, brilhou no processo histórico. Talvez ajudasse nisso um certo gosto pelo poder que seus biógrafos até hoje assinalam.

De certo é que ela abraçou a causa da independência, no momento em que esta corria risco. Pedro estava cedendo às ordens de Portugal para retornar a Lisboa quando Leopoldina, na função de chefe do Conselho do Estado e Princesa Regente Interina, escreveu a carta icônica que o alcançou nas margens do Ipiranga e começava assim:

“Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças, se partirmos agora para Lisboa. Sabemos bem o que têm sofrido nossos pais. O rei e a rainha de Portugal não são mais reis, não governam mais. São governados pelo despotismo das Cortes que perseguem e humilham os soberanos a quem devem respeito (...) As Cortes portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos e humilham-vos. O Conselho de Estado aconselha-vos a ficar”.

E ele ficou. Não se sabe bem se foi logo depois de ler a carta que tirou a espada da bainha, ergueu-a e gritou “Independência ou Morte!”, conforme nos mostra a tela de Pedro Américo. É bem possível que não tenha havido tanta energia no ato, até porque o herói estava sofrendo há dias com diarreia. Entretanto, sua recusa em partir, aceitando a opinião da mulher, selou a nossa liberdade.

Leopoldina viveria pouco tempo depois disso. Morreria antes de completar trinta anos, tendo legado o amor aos livros e ao conhecimento aos filhos, um deles Pedro II, com quem mal chegou a conviver. Seu papel na nossa história precisa ser melhor dimensionado e são vários os autores que têm se dedicado a esse trabalho meticuloso. O primeiro deles foi o bibliotecário austríaco Rochus Schuh, que catalogou todos os livros lidos pela princesa, e outros de sua estante, mais trezentas cartas e uma coleção de pedras. Um tesouro que deu início ao Museu Histórico Nacional, devastado por incêndio no dia 2 de setembro de 2018.

Que as chamas da destruição à qual assistimos nos dias atuais não reduzam a cinzas outras memórias. Porque sem memória não se forma identidade.

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