OPINIÃO

Tatiana

Na minha primeira gravidez, que foi de risco, tive amigas que, também grávidas, sonhávamos juntas com os bebês dos quais nem sabíamos o sexo. Leia o artigo de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 21/08/2022 | Tempo de leitura: 3 min
especial para o GCN

Na minha primeira gravidez, que foi de risco, tive amigas que, também grávidas, sonhávamos juntas com os bebês dos quais nem sabíamos o sexo. Apenas ouvíamos, com chiadeira, seus coraçõezinhos batendo, através de tosco cone, acho que de metal, nos consultórios dos médicos obstetras que nos acompanhavam. 

Junto com a minha barriga, acompanhava as de outras amigas barrigudas, como a Fátima. Nunca fomos muito próximas. Mas tínhamos nossas mães amigas, tínhamos amigas em comum, tivemos outros filhos coetâneos. Sua mãe e a minha moravam na mesma rua e, naquela época, andávamos muito a pé. Era por isso que sempre nos encontrávamos todas e sempre: para ir à loja da d.Melica, local onde bordadeiras e costureiras se encontravam, era preciso passar pela minha casa. Para ir ao mercado municipal, estava no caminho. Até para ir ao Correio e à Praça Nossa Senhora da Conceição. Dona Maínha, a mãe de Fátima partiu, minha mãe partiu, mudei-me de lá para outro lado da cidade, fomos vizinhas durante pouco tempo, nossos filhos cresceram – Fátima teve outros, eu também. Eventualmente nos encontrávamos. Aproximavam-nos amigos em comum e a paixão por bordados à qual ela se entregou, e eu abandonei.

Tempos depois, quando já havia sido criado o Instagram, dei com cara linda, levemente familiar. Sorriso aberto, boca cheia de dentes perfeitos, coisa de anúncio de revista, olhos de quem enxerga a vida florida, sem nuvens no céu, montanhas verdes e cascata transparente. Seu nome era Tatiana, que eu revia quase trinta anos depois dos encontros na pracinha da Matriz, onde as crianças brincavam. Comentei com conhecidas a beleza da moça que citava nomes e situações de pessoas do meu convívio e elas me contaram que a mulher bonita que eu citava era “filha da Fátima e do Flavinho, sobrinha da Maura, lembra?” gente do meu convívio particular, acrescentaram. Foi então que reconheci os traços fisionômicos. Sem tê-la encontrado nos últimos vinte ou trinta anos, passei a segui-la no aplicativo da internet, onde postava suas festas, dava demonstração de sua alegria, de seu bom humor, de sua coragem e da esperança em viver muito e muito bem, por muito tempo.

O susto veio ao saber que ela carregava um câncer, tinha episódios de muitas internações, intervenções, períodos de afastamento da família como durante a epidemia do Covid. Ela usava máscara que ocultava seu sorriso, jamais seus olhos que continuavam brilhantes, abertos, sorridentes. Comemorou seu aniversário no hospital, fez festa quando teve trégua e recebeu alta. Tinha por costume e rotina chamar cabeleireiro, fazia as unhas semanalmente, usava touca para minimizar o efeito das quimioterapias. Assustava-me, quando revelava nas suas postagens, planos para depois, “quando recebesse alta”. Não conhecia pessoas fortes, corajosas e esperançosas como Tatiana, confesso.

Há anos, quando eu mesma recebi diagnóstico semelhante, senti-me ameaçada na minha onipotência, encurralada na parede, frágil, decepcionada com Deus, desafortunada, infeliz. Fechei a porta da minha casa, do meu coração, a covardia tomou conta do meu ser, achei que, se fosse continuar sendo amada seria por pena, comiseração, dó. Não conhecia Tatiana. Se conhecesse, ela teria sido exemplo de como superar a adversidade, como acreditar no dia seguinte: depois que ela ficou doente, anos se passaram e muita gente, muita gente, faleceu quer fosse da mesma doença, atravessando a rua, de enfarto, de susto, de Covid, de queda de escada, enquanto Tatiana, durante a hospitalização fazia planos para sua nova casa onde se recuperaria.

Ela se foi essa semana. Mas deixou para todos que a conheceram ou não, a forte impressão de que a vida é mais do que a gente imagina: a vida é lutar, acreditar, fazer força para viver (e bem), planejar o amanhã, conviver com as pessoas que nos querem bem, sonhar com a cura e ter certeza do mais básico que podemos pensar: ninguém tem passaporte para a eternidade.

Sentidos pêsames, familiares da Tatiana. Mas parabéns pelo ser humano ao qual deram vida e educaram. Com a permissão de vocês, coloco Tatiana, inspiradora, corajosa, guerreira, na Galeria de Grandes Pessoas que conheci. Um verdadeiro Anjo.

Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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1 COMENTÁRIOS

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  • APARECIDO DONIZETE NUNES
    19/08/2022
    Grande perda na Comunicação Francana, estamos indo embora infelizmente.