Depois de repousar os olhos sobre a capa, perfil de Franca em tons de azul e cinza, o leitor de iSOLados reunidos abre o livro e passa à nota do autor, José Lourenço Alves, que explica a sua composição: “Estes são textos introspectivos: abordam emoções e sentimentos, numa interação entre o eu, o mundo e o cotidiano. Foram elaborados ou revisados durante o isolamento social imposto pela pandemia de coronavírus.”
A explicação é importante porque prepara para a autonomia dos blocos textuais e ao mesmo tempo define a gênese deles. Os dois primeiros, Cinquenta e Seis e Retrato Musical, foram publicados como livros digitais. Quem te Guia? e Postagens tornaram-se conhecidos dos internautas com conta no Facebook. Debate Comigo é fruto do blogue MIRANTescrito. Como se pode perceber, todos migraram do digital para o formato impresso, um movimento que temos visto com frequência no mundo da literatura. A escrita ainda continuará por muito tempo de forma concomitante nessas duas plataformas, penso.
Cinquenta e Seis é mais que “uma reflexão sobre os últimos dez anos”. Emergem dos parágrafos um espaço, um tempo, uma reverberação e os efeitos impregnados na alma do viajante que chega a Machu Pichu depois de caminhada noturna e se deslumbra com a cidade “enfim encontrada, iluminada pelo sol nascente”. Ao mesclar prosa e poesia através do olhar pungente que envolve a cidade icônica, o A. registra perdas familiares e cria uma quase-narrativa ao inserir elemento de ficção que prefere não explorar, mantendo-o no nível da metáfora. O mistério do cilindro pode representar o mistério da vida, como os fatos inusitados para os quais não estamos preparados nem encontramos respostas plausíveis.
Retrato Musical elenca num cantabile a playlist da geração do A., abarcando hits de décadas passadas que até hoje encontram ressonância na alma do brasileiro. Por seu caráter afetivo tem forte poder sobre o leitor da mesma faixa etária que se identifica imediatamente com elas e faz um link com o contexto em que surgem. A revisitação se faz a partir da infância, com A Treze de Maio, hino dedicado à Nossa Senhora de Fátima, muito conhecido das crianças católicas que em coro ainda o repetem em cerimônias religiosas: "Ave, Ave, Ave Maria! Segue com o Samba da Bênção, Vida de Viajante , Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida, Me Dá O Que É Meu! E mais: Lindo Lago de Amor, Trem Bala, Tente Outra Vez, Pedra Não é Gente Ainda, Anunciação, É Preciso Saber Viver, País Tropical, A Massa, Super Homem, Planeta Água “etc. etc e tal”. Antecedendo essas evocações sonoras, o A. revela numa “entrevista imaginária” que ao escrever o texto percebeu “o quanto as palavras e os seus significados atraem a minha atenção musical, o que explica essas memórias marcadas por canções e quase somente por canções brasileiras”.
Postagens é coletânea de textos de padrão formal variável. Destaco a frase antológica com irônico traço machadiano: “A alegria dos infelizes é a infelicidade alheia”; a crônica em homenagem à primeira professora; outra que configura elogio à amizade; o artigo de cunho político numerado 54; uma biografia que são muitas no 55; o poema 40 que termina assim: “Passo a passo/ dia a dia/ De poesia em poesia/ Do limão a limonada/ Da dor os ensinamentos/ Não tenho saco pra guardar ressentimentos.” Apesar de produzidos para divulgação Internet, o que poderia deixá-los datados, todos os textos são atemporais, têm a frescura do hoje porque são embasados na verdade que sustenta o discurso do Autor.
Debate Comigo ocupa apenas dez páginas, pertence a um gênero híbrido que funde entrevista e monólogo, mas vale por um ensaio contundente, lúcido e assertivo na condenação ao racismo e outras formas de exclusão.
Deixei para o fim Quem Te Guia, que me impressionou. É um texto que se destaca dos outros já a partir da estrutura. Usando a terceira pessoa do singular para narrar uma história que é a sua, José Lourenço Alves já no prólogo condensa sabedoria de maneira tão sintética quanto profunda, levando-nos a pensar que há males que vêm para bem, conforme já selou o ditado popular. Quando uma porta se fecha, outra se abre, somos autorizados a acreditar, lendo a pequena mas importante apresentação de uma viagem que acompanhamos entre curiosos e comovidos, influenciados pelas emoções do narrador e o ritmo dos relatos. Assim é anunciado o que vem: “Na noite de quinta-feira da semana santa de 2011, na sala de embarque do Aeroporto de Guarulhos, você estava na expectativa de ficar dois meses nos Estados Unidos. A principal parte do roteiro incluía os principais monumentos da luta contra o racismo. Teu objetivo era entender melhor essa parte da história de lá e te entender na história daqui. Lembra?”
O leitor é então apresentado a Atlanta, Tuskegee, Montgomery, Selma, Birmingham, Nashville, Memphis, Chicago, Detroit, Cleveland, Whashington DC, New York. Numa escrita marcada pela plasticidade que linda dados oficiais, o A. nos mostra a essência de cada cidade e sua importância no custoso processo de libertação liderado por lideranças negras. Conhecidas do público por aparecerem como cenários de muitas sagas abolicionistas no cinema, estes centros urbanos tiveram papel importante na história norte-americana. Sob tal aspecto, o relato que nos faz José Lourenço Alves, como personagem da travessia da ponte que liga Montgomery a Selma, nos remete a uma epopeia que teve início antes de Martin Luther King e ainda não terminou. Há muitas pontes a atravessar até que o menor ato racista seja banido de vez das sociedades. No epílogo, a síntese do pensamento que se espraia nos leva inevitavelmente a refletir sem platitudes: “A luta contra o racismo se confunde com a luta contra as desigualdades, que maculam a sociedade brasileira. Luta solitária e ao mesmo tempo luta solidária. Luta interna, travada no campo do pensamento, e externa, travada no campo da cultura, da política, do convívio. Luta que, enfim, não é luta, é arte e fé, é alegria de viver.” Maior exemplo de resistência haverá?
Volto à capa do livro, ao seu título instigante. Noto que em várias páginas que compõem a obra o autor brinca com as palavras, unindo-as. Parece ser um gesto lúdico, mas vai além, pois busca criar um novo sentido. Ao reunir os textos para o volume aqui comentado, ele volta a essa característica de estilo. iSOLados reunIDOS são duas palavras que germinam uma terceira, se observarmos as maiúsculas e sua relevância: SÓLIDOS. Ao lado da inspiração que motiva e do respeito que desperta, a solidez é a grande qualidade desse livro, história de vida marcada pela luta, mas também pelo otimismo. Em tempos líquidos, uma obra que merece aplausos.
O Autor
José Lourenço Alves é promotor de Justiça aposentado, especialista em Inteligência de Segurança Pública, mestre em desenvolvimento regional, doutor em promoção de saúde, atual presidente da Academia Francana de Letras. Publicou o autobiográfico Compromisso e Realidade (2007), a ficção realista Nas Entrelinhas (2011) e o conto Liberdade- uma estória (2013).
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