NOSSAS LETRAS

Ipês amarelos

A gente que escreve não sabe exatamente por que é acometida por associações que parecem não ter muito nexo no momento em que ocorrem. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 13/08/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Alfredo Palermo, patrono da cadeira 18 que passo a ocupar com orgulho na Academia Francana de Letras, me contou um dia que seu amigo Márcio Martins Ferreira, desembargador conhecido pelo saber jurídico, refinamento de modos e apreço à poesia, era apaixonado por nossa cidade. Francano, morava na capital, mas vinha para cá de vez em quando, acompanhado da mulher Octavia, com quem formava par bonito de se ver e com quem era agradável conversar. Encontravam sempre qualidades a destacar na terra natal, a começar pelo clima ameno.

Vindo de carro de São Paulo, o casal, muitos quilômetros antes de chegar, já divisava o perfil urbano no horizonte.  Numa dessas vindas, sendo recebido pelo amigo, lhe disse: “Palermo, está errado dizer que se chega a Franca, o certo é dizer que se sobe a Franca”. Foi feliz ao usar este verbo como metáfora perfeita; a frase, repetida por nossos cronistas, ficou vinculada à figura ilustre.  À parte as emoções, sabemos que Franca está situada a 1040 metros acima do nível do mar.

A gente que escreve não sabe exatamente por que é acometida por associações que parecem não ter muito nexo no momento em que ocorrem; mas no fim descobre. Na manhã de sexta-feira, ao sair do condomínio onde moro e passar diante de jovem ipê de copa bem arredondada, como se traçada a compasso, só flores amarelas e nenhuma folha verde ou castanha no meio, me veio à mente o desembargador com sua frase.  Aos poucos fui me dando conta do motivo das coisas lindadas. Acontece que ipês amarelos, como os que por mais de duas semanas deram um show de beleza nas ruas e avenidas francanas desde julho, são árvores típicas de regiões altas, onde se desenvolvem bem e dão floradas magníficas.

Quanto a Alfredo Palermo, sua figura emergiu de braços dados também com crônicas que assinava sobre as árvores de nossa cidade. Perdi a conta de quantas vezes abordou o tema nas Gazetilhas e, depois, nos cadernos de literatura do jornal Comércio da Franca e do portal GCN. As magníficas espatódeas da Frederico Ozanan; as sibipirunas da Presidente Vargas; os cachos de acácias (muito antes de Caetano Veloso as cunhar!) na Couto Magalhães; os flamboaiãs em chama na região da rodoviária tornavam-se ainda mais admiradas através de seus textos. E o que dizer dos ipês? Roxos, cor-de-rosa, amarelos e brancos, pintando a paisagem em ordem cronológica, sem convivência que pudesse suscitar comparação ao vivo, representavam inspiração a cada inverno.  Nunca veríamos reunidos ipês como em buquê multicor- ensinava.  Tenho quase certeza de que Alfredo Palermo foi dos primeiros cronistas francanos a chamar a atenção dos leitores para a paleta de cores das árvores plantadas em Franca pelos que já defendiam, em meados do século passado, uma arborização que presenteasse com sombras, oxigênio, cores e beleza.

Embalada por essas lembranças, fiz uma foto do ipê inspirador e segui meu rumo, com vontade de ser ipê, reverberar os raios do Sol, fremir sob a aragem fresca, acolher algum beija-flor. No dia seguinte, passando de novo por ele, percebi que a ventania da noite havia derrubado metade das flores no chão. Sentindo-me um pouco frustrada, fiz nova foto para comparar os dois momentos. Não vi o ipê no domingo, quando caiu leve chuvisco por aqui. Na segunda, assim que meus olhos o focaram, precisei parar o carro e respirar profundamente. Todas as flores estavam no chão e os galhos nus me davam impressão, piorada pelo frio, de desamparo, amputação.

Agora, enquanto escrevo, olho as duas fotos: a primeira plena, a segunda   com metade das flores no chão. Penso em outro escritor a quem os ipês tocaram o fundo do coração: o querido Rubem Alves, que chegou a traçar um roteiro turístico para que os campineiros os visitassem e deixou explícito em testamento que queria ter suas cinzas depositadas nas raízes de um amarelo, o que foi feito. De alguma forma ele já faz parte da seiva daquela que o inspirou. 

Penso também no meu desconforto diante do ipê desnudo e imagino que poucas árvores expressam tão bem a ideia de finitude.  Outros ipês nos oferecem flores durante mais de uma semana, mas o amarelo dura apenas alguns dias e logo despacha as suas para o chão. Ali por poucas horas o tapete colorido vai se desfazendo em lama, estado do que já não é, do que já foi, do que não pode mais retornar aos galhos para continuar sendo.

Impossível não pensar na vida humana e sua fragilidade. Por mais que vivamos, de repente, como as flores do ipê, um dia deixamos de existir, rumamos para o chão ao qual não desejaríamos voltar. Somos pó e a ele retornaremos, nos é lembrado toda Quarta-Feira de Cinzas.  Mas, em geral queremos continuar existindo!  Desejamos viver “em bráctea, racemo, panícula, umbela.”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade. Numa crônica de agosto. Sobre ipês amarelos. Nos tempos cinzentos da ditadura. E dos IPMs- inquéritos policiais militares de funesta lembrança.

A história é cíclica, voltamos a ler uma carta depois de tê-lo feito há 45 anos. Os ipês também são cíclicos, voltaram a florescer neste inverno.  Eles não falam, não ouvem, não sentem como os humanos, mas oferecem sua florada a nós, de reino diverso, numa prova de imensa generosidade. Há que se registrar e agradecer e ter esperanças, principalmente em tempos trevosos. Virão novas safras, com a cor da vida, como a definiu Adélia Prado: “o amarelo engendra’.

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