NOSSAS LETRAS

Hemogangrena

Pasmem leitores, tem gente vendendo órgãos à luz do dia. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 06/08/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Pasmem leitores, tem gente vendendo órgãos à luz do dia. Vou contar, mas aviso: o que está acontecendo fantasia sarcasmo e ofender a classe dos caolhos que se acham reis na terra dos cegos. Ando com o Pemba no couro de saber as palavras perdendo significado de tanto mal uso, afiado e bem-disposto penso acabar com tudo e começar de novo. Tem gente vendendo órgãos à luz do dia.

Se não me entende não me julgue, depois alguém mais amoroso te explica a diferença entre o real e o abstrato, entre fato e foto, entre teta de mãe-de-leite e mamada de criança obesa esquecida no berço. Tem gente vendendo órgãos à luz do dia sem cuidados de higiene ou atestado de procedência.

Procedência é tudo no país dos sobrenomes, os da silva e os gonçalves por exemplo precisam polir mais o verbo que usam até um “A” virar porta aberta para flecha de Exu. Se no país vizinho já é possível comprar legalmente até membros de pessoas ainda vivas, por que no Brasil tudo demora? Nossos hospitais estão abarrotados, as delegacias de Franca entupidas. A solução dos problemas é simples: apropriação privada de órgãos anônimos não consanguíneos prevista na lei 9256/74 que, mesmo aprovada pelo congresso tupiniquim, não vigora.

Eu era menino e lembro de ouvir as pessoas em casa discutirem o assunto. Tia Odalina falava baixinho com medo de alguma vizinha dedurar sua posição política sobre a matéria aos órgãos repressores da ditadura.  Mas, convenhamos realistas, nem os militares nem os liberais fizeram do bem-estar um bem social. Agora essa situação deprimente.

No Brasil teremos de importar rins, fígado, pulmões e corações com o preço nas alturas. As veias abertas da américa latinam poluídas nessa hemogangrena absurda que estamos vivendo nos últimos anos desde 2013. Do que adiantou o esforço da ciência publicitária aliada às indústrias para coisificar a Vida e a Morte, ensinamos o niilismo realista de Schopenhauer nas pré-escolas, mas não usufruirmos das facilidades do progresso.  Circulam na internet catálogos anunciando a morte mais conveniente como vedete: “morra e deixe viver” – é a poesia cada vez mais perto do slogan e por isso vazia graças a deus, não provoca nem eleva. Longevidade é direito básico para bem-nascidos, quem paga. 

Aplicar o terror nas engrenagens do caos é piegas de tão batido, mas funciona para quem tem pouca leitura. Milhares de pessoas querem morrer, basta incentivar a hipocrisia. Morrer de fome e desleixo por falta de educação e livros é ultrapassado, óbitos além das chacinas de pretos e pobres e gays, essa escória da sociedade que produz bons órgãos para transplante até completar 20 anos é a solução para manter ativos e dividendos dos caolhos que se acham reis na terra dos cegos. Longevidade é para quem pode pagar, o povão deve produzir e não lamentar, cada um cumpre seu papel nesse mundão de meu deus, a vontade do pai eterno hetero branco feito pomba macho branca no céu azul sem camadas de ozônio.

Se a lei 9256/74 fosse cumprida veríamos mais óbitos e a bolsa de valores subir seus vetores ao paraíso dos lucros. Nos classificados o serviço de “limpeza e entrega” sairia mais em conta que as pizzas de um mês. É só fazer contas: encomendas feitas por e-mail ou mesmo whatsapp dispensariam a burocracia que emperra as transações de órgãos essenciais. Um sistema prático é o que nos falta. Se você morresse de repente, ou caisse de uma escada ou fosse atropelado ou mesmo se de susto com o preço da sexta básica, o seu coração se perderia e com ele tudo que viveu de pouco ou nada que importe. Agora, se morrer doente na fila do SUS nem atestado de procedência acompanharia os órgãos competentes comprovando “condições de uso”. Mais oferta de serviço resulta em qualidade e valor agregado, é a lei da oferta e procura. Precisamos de um estado forte para que cada órgão do sistema funcione bem, em harmonia, sem o pesadelo do desmonte democrático.

Mas no Brasil não, aqui nada vai para frente.

No país vizinho, os órgãos que não são vendidos são armazenados. Destinam-se à exportação e só caolhos reis na terra de compram. Eles continuarão eternos no poder se essa hemogangrena não for estancada em 15 de outubro. Continuaremos a importar o que já não serve mais, ideias e doutrinas fascistas?

Se você ou um conhecido seu precisar de um dedo, um pé ou um antebraço, terá de pagar caro por uma prótese. Além da fronteira, encomenda-se! Você pode escolher a cor da pele e o tipo de sangue antes mesmo da pessoa apagar de vez. Não são poucos os pais que vendem seus filhos na adolescência, que é quando valem mais. A solução de todos os problemas é simples: apropriação privada de órgãos anônimos não consanguíneos.

Enquanto escritores filósofos e operários poetas morrem à mingua à espera de um transplante de medula, caolhos que se acham reis na terra dos cegos enganam a Morte se passando por mitos. Tudo no Brasil é vergonhoso.

Hoje de manhã passei no plantão da vigésima delegacia para colher dados para essa crônica e fazer a reportagem, e vi esse homem de meia idade que fora preso comercializando o que lhe restara de legítimo: o corpo. Ele ainda usava o cartaz pendurado no pescoço – “VENDO PANCREAS EM BOM ESESTADO” - ninguém morre menos pobre que isso. Parece que no Brasil estamos nos acostumando à falta de Estado e órgãos essenciais.

Foto imagem do filme Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade ; adaptação do livro do escritor modernista Mário de Andrade

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