OPINIÃO

Heras

Por Lúcia Brigagão | especial para o GCN
| Tempo de leitura: 3 min

Já pensei que mães eram infalíveis feito o Papa. Pensava que elas só faziam o bem, que sempre sabiam como agir. Pensava que pelo fato de amarem incondicionalmente seus filhos, todas suas ações seriam absolutamente corretas. Inquestionáveis. Mães seriam, em qualquer situação, politicamente corretas, jamais vacilantes. Mas isso era quando eu tinha cinco ou seis anos e minha mãe, especialmente ela, ficava num altar idealizado, construído especialmente pra ela, talvez segundo os padrões sociais e morais da época.

Quando minha idade triplicou, meu desapontamento com relação às mães em geral, à minha em particular, acompanhou o aumento dos números de anos de vida. Achava-me mais que perfeita criatura, embora – ou talvez por isso mesmo - numa época em que não se discutia superioridade entre sexos, adolescente rebelde, questionadora, renitente e teimosa. Mais que eu, minha mãe precisou de recursos terapêuticos nessa fase. Como isso era raro, achou a ajuda nas opiniões e pitacos das vizinhas, que eram felizes e não sabiam: ninguém tinha um problemão como eu, em casa.

Quando virei mãe, achei-me perfeita. Reinventei o amor, reinventei o modo de educar. Subi nas tamancas e não tinha Piaget, não tinha Freud, não tinha profissional que se comparasse, em perfeição, desenvoltura, sabedoria em sapiência ... comigo. Já via lá na frente meu altar erigido por justo merecimento. Eu era Hera, simplesmente a personificação da deusa do lar e da família. Antecipava as glórias, elogios, loas que natural e seguramente viriam porque, pra falar a verdade, era questão de tempo a chegada do reconhecimento público da minha perfeição. Não havia um prêmio Nobel de Mãezice? Pois deveria haver e, quando houvesse, seria meu. Isso aconteceu quando ainda eu era prepotente, boba, tola. A idade dobrara e eu continuava me achando...

Aí me aconselharam terapia. Sabe aquele soldado do batalhão que marchava com o pé esquerdo enquanto os colegas usavam o direito e ele ainda brigava porque considerava todo mundo errado? Era eu. E não tomei jeito. Logo que entrei na sala de terapia, enredei tudo para o médico e em seguida me calei, pois tinha certeza de que ele iria me mandar embora e pedir que os críticos me substituíssem no divã. Nem ele falou o que eu esperava, e estou lá até hoje. Pelo menos no desejo.

Minha idade dobrou desde aquela que tinha, quando me achava a perfeita. Não consertei lá grande coisa, mas não considero mais, por exemplo, ser qualquer dogma minha própria cláusula da infalibilidade. Já aguento trancos mais fortes da vida sem dar “piti”. Reagi mais humanamente, menos italianamente, quando um filho, assim do nada, me perguntou se conheço alguma coisa sobre Ética: fiquei olhando para ele, lembrando-me que eu também era assim “presunçosa, tola, vaidosa, atrevida, soberba, inculta e banal”... Sorri e pensei: “Virei minha mãe!” Respondi-lhe que sabia pouco. “Muito pouco. Pouca coisa, quase nada. Estou aguardando para aprender mais com você...”

Agora, filhos adultos, vejo-me como filha deles pois há momentos em que todos confundimos nossos papéis. Não sou mais apenas mãe. Sou a matriarca que subitamente se vê questionada por eles em questões simples do cotidiano como “devo planejar minhas férias com amigos ou ir com eles e famílias para a praia no final de ano?” Meu tempo livre: “devo me ocupar mais com grupos de benevolência ou com amigos boêmios que se reúnem semanalmente no barzinho da esquina?”.

Já pensei em voltar frequentar o divã do psiquiatra, o que sempre redunda em benefícios, mas não sem antes fincar o pé no chão, redefinir-me como mulher, independente, autônoma e livre, sem jamais esquecer que sou problemão, mesmo para os que quero bem, mas que sou equação solucionável. E que oferecerei, aos que me desvendarem, todos meus túneis e câmaras secretas com prêmios e tesouros ricos assim que puderem abrir o coração e me desvendarem.

Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.

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