NOSSAS LETRAS

Os jardins de Amantikir

Antes de Adão, “nascido da terra vermelha”, e de Eva, “a que acolhe a vida”, havia um jardim. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 23/07/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Antes de Adão, “nascido da terra vermelha”, e de Eva, “a que acolhe a vida”, havia um jardim. Segundo textos em hebraico, este lugar maravilhoso chamava-se Eden, “planice bem regada e com árvores”.  Ali vibravam as flores que seriam conhecidas e as frutíferas carregavam-se a cada verão. Então Deus criou dois humanos para usufruir de sua obra e o casal passou a habitar o território só comparável ao útero de uma mãe antes do nascimento de seu filho. Tudo estava garantido a todo momento sem qualquer esforço.

Porém, vejam só, não deu muito certo. Expulso daquele paraíso por conta de serpente e maçã, das metáforas mais expressivas que conheço, o par vagou fora dos limites do que havia perdido e comeu o pão que o diabo amassou. Sobrou para nós, seus descendentes. Mas a ideia de jardim firmou-se através dos milênios como um locus utópico de beleza e perfeição imune a qualquer nódoa.

Nos tempos bíblicos, jardins costumavam ser áreas cercadas por sebe de espinhos ou muro de pedras, como lemos nos Cânticos. Se as Escrituras estão corretas, o do último rei de Judá ficava a oito km da muralha sudeste de Jerusalém. O de Salomão distava o dobro, segundo um cronista da época, Josefo, que também descreve os jardins suspensos da Babilônia, obra do rei Nabucodonosor e uma das sete maravilhas do mundo antigo.

O conceito de jardim evoluiu de acordo com as culturas. No Ocidente, ele se subdividiu em diferentes tipos. Celtas usavam extensos gramados como lugar sagrado. Árabes fizeram de Alhambra um monumento de fontes, esculturas e pedras. Franceses confiaram a arquitetos a criação de espaços que traduzissem o espírito da Renascença. No mesmo período, italianos fixaram regras rígidas para a disposição das plantas em canteiros geométricos. Ingleses, especialmente apaixonados pelo mundo verde, desenvolveram seu próprio estilo, com mistura de formas, cores e texturas organizadas em linhas sinuosas. No Oriente, os jardins até hoje correspondem a exigências não só estéticas, mas filosóficas e religiosas, seguindo uma simbologia muito antiga. Em todos, orientais ou ocidentais, a água estará sempre presente, em lagos, regatos ou fontes.

Conhecer mais de vinte jardins em tamanhos naturais, num único lugar, me parecia sonho impossível que se concretizou no começo de julho, quando visitei Amantikir em Campos do Jordão. Bem-sinalizado, o circuito recebe o nome tupi da Mantiqueira, que o acolhe. Mantikir, que significa “Serra que chora” no poético dizer dos índios, desvela a quantidade de cachoeiras ali existentes.

A visita começa no Jardim Japonês, onde lanternas simbolizam a luz da sabedoria, pedras remetem a ancestrais, pontes ensinam que para evoluir é necessário superar obstáculos. O Chinês tem no seu centro a Porta da Lua, marcando a passagem entre o mundo exterior e o recôndito do lar. Exemplo europeu, o Romântico convida à fantasia, oferecendo até a experiência de um Jardim de Sombras.  Da Escócia vem aquele que se tornou cartão postal do lugar, o Labirinto de Grama, com forte apelo esotérico. Outro Labirinto, este de 450 metros quadrados de área e 600 metros de corredores, é o maior do Brasil e um desafio para a mente. No Espelho d’Água, a cada hora do dia a superfície reflete um pedaço diferente do céu e das árvores que se encontram em patamares mais elevados. Metros além há um Mirante, com visão do Vale do Lageado, situado a mais de 700 metros de desnível em relação ao parque. Outra vista espetacular se desenha a partir do Jardim Alemão, com abundância de cores e espécies. Depois de muita fruição de beleza, a saída é pela Trilha das Bromélias, plantas tropicais que usam os troncos das árvores apenas para suporte. Elas digerem detritos orgânicos que são colhidos pelo “copo” criado por suas folhas. Dispostas em forma de roseta, captam a água das chuvas, sobrevivendo sem que suas raízes toquem o chão. Estar ali é se lembrar de um paisagista brasileiro de renome internacional- Burle Marx, e de uma inglesa que se apaixonou pela nossa flora e aqui viveu por mais de vinte anos- Margareth Mee.

Uma visita dessas pode durar duas horas ou um dia inteiro. Estar ali é encontrar beleza e paz, é sentir a força imensurável da natureza. Sobrevivendo em cidades poluídas, ruidosas, malcheirosas, o ser urbano precisa olhar mais para o que vem da terra e se faz forma e se faz cor e se faz perfume, de forma generosa e gentil.

Os jardins de Amantikir nos introduzem em um mundo onde o reino vegetal fala ao coração e movimenta nossa alma. Como a poesia, eles são umbrais que nos levam para outro lugar.

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