NOSSAS LETRAS

Bugalhos (e alhos)

Bugalhos são pequenas peças quadradas de tecido, cheias de areia, ou de arroz, ou similares, costuradas a mão. Leia a crônica de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 23/07/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Sabe final de tarde de dia cheio, no meio de semana tensa, com mil pepinos para serem resolvidos, além do corpo podre, nariz entupido sem resfriado, cabeça pesada? Pois é. Estava tão cansada e sem pique que precisava buscar gasolina em algum canto.

A solução veio rapidinho quando soube que mamãe havia feito bugalhos para minha sobrinha e não havia instrutor disponível e hábil para ensinar à garota todos os truques do jogo. Tomei banho daqueles de lavar a alma, botei roupa velha, tênis caindo aos pedaços, deixei cabelos molhados e me mandei para lá. Fui feito vampira sugar alegria, espontaneidade, riso solto e muita disposição. Investi-me de técnica na coisa, e me autorizei expert no esporte.

Bugalhos são pequenas peças quadradas de tecido, cheias de areia, ou de arroz, ou similares, costuradas a mão. Coisa de avó. As regras do jogo são claras e fáceis: é um tal de jogar pra cima, pra baixo, atira no chão, recolhe uma a uma... Etapa curiosa e que exige prática, é passá-las sob arco formado pelo dedão e o fura-bolos da mão contrária, fincados numa superfície. Para complicar, o adversário "escolhe" a derradeira a ser passada, procurando, claro, complicar a vida da gente. É delicioso... Diferente dos brinquedos comprados, os bugalhos exigem cuidado. Primeiro, porque foram feitos manualmente pela avó, especialmente para a gente. Depois, porque são feitos com retalhos escolhidos para o colorido ser harmonioso. Combinarem entre si. E devem ser guardados em locais seguros: sumiu uma pedra, comprometeu o jogo. Bugalhos são feitos para durar anos.

Começamos o treinamento.

Sentamo-nos no chão e ensinei como jogar e recolher as peças. Ela jogou na frente, pois não tinha pecados e pode tranquilamente atirar a primeira pedra. Não acertou. Mas não fez diferença. Não desistiu e insistiu em acertar. E como se ria! E como ficou feliz em conseguir apanhar duas, nas costas das mãos! Sabia que ainda havia longo caminho pela frente: já havia antecipado todas as regras. Mas ela cumpria parte e exultava com a conquista. Não se importava com tudo que ainda estava por aprender. Não foi voraz na busca de suas habilidades.

Não sei se ela percebeu o quanto me ensinou naquela noite. Afinal nenhum bom professor avalia a extensão da aprendizagem, assim, imediatamente. Não sei se ela percebeu que me deu energia suficiente para encarar o resto da semana, pois acabou com meu desejo de fazer tudo ao mesmo tempo. Imagino que ela nem se tocou que me ofereceu, através do seu próprio exemplo, a saudável oportunidade de aceitar minhas falhas e derrotas, quando ela repetia, rindo às escâncaras, de movimento malsucedido ou frustrado. Não sei se ela aprendeu alguma coisa de bugalhos. Mas deve ter gostado da experiência comigo. Solicitou-me novamente há pouco pois precisa de fazer pipa (cor-de-rosa) e quer que eu a ajude. Já comprei papel de seda, varetas (hoje em dia vêm prontas, nem precisa mais roubar bambu da cerca do vizinho), cola (e não grude de polvilho). Já bolei o lay-out da pipa, vou comprar retrós de linha, arranjar lata de massa de tomates vazia para enrolar a linha nele. Estou com o arsenal completo! Prontinha!

Agora, por via das dúvidas, adiantando-me, vou começar a treinar cuspe à distância, bolinha de gude e "fincar faquinha": tem outro sobrinho pequeno que mais dia, menos dia, me solicita também. Quero estar pronta quando ele precisar de mim.

Essa passagem voltou-me à memória porque estão começando as férias e com elas a considerada tenebrosa perspectiva de molecada em casa, com dia inteiro pela frente. Já dominei a tentação de passar na locadora e trazer passatempos virtuais para as crianças. E fiquei pensando, cá comigo, por que razão os pais de hoje não se dão o direito de ter o extremo prazer de brincar com seus filhos? Qual será o motivo de incentivarem tanto atividades que não demandam criatividade ou participação deles? Brincar com as crianças faz a gente se soltar, voltar no tempo, lembrar de situações, resgatar, reavivar, reviver, renascer. Já ensinou uma criança cantar uma cantiga de roda? Já ensinou uma criança andar de bicicleta? Já chupou com elas um picolé sentado na calçada? Não?!  Então comece. É um investimento e tanto, além de proporcionar diversas compensações emocionais.

Pode crer, sai mais barato e é muito mais prazeroso que pagar uma terapia quando eles crescerem e se virem frustrados porque não tiveram infância.

(Para minha surpresa, ao procurar ilustração para o texto de hoje, encontrei essa imagem que está como propaganda do artesanato de Maria Alice, que mora em Franca, juíza aposentada de casamentos, que hoje se dedica “a casar lazer com prazer...”)

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