NOSSAS LETRAS

Surpresas, reviravoltas e dramas

Quando materializo meus significados em signos, como fiz com essa lembrança catártica, alcanço um destino terapêutico para meus questionamentos. Leia a crônica de Júlia Gonçalves.

Por Júlia Gonçalves | 02/07/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Para me aproximar de minha mãe, criei uma rotina para inseri-la em meu mundo “audiovisual pop” de forma que ela me compreenda melhor e possamos assim fortificar nossos laços.

Todos os dias, antes de dormir, assistimos a um filme ou uma série. Meu primeiro desafio era encontrar algo que a agradasse e que não me entediasse facilmente, com o passar dos dias comecei a entender o perfil dela, e surpreendentemente éramos parecidas nisso. Gostamos de surpresas, reviravoltas e dramas.

Apresentei a ela Black Mirror, uma série de narrativas distópicas ambientadas num futuro tecnológico que mostra de forma satírica e triste a condição humana em que já vivemos; iludidos com a tecnologia criando rotinas, fortificando laços. Iniciamos com o episódio 15 Milhões de Meritos, que é sobre uma realidade perturbadora e atual pra "karamba". A narrativa dialoga com o Mito da Caverna de Platão, escrito antes de Cristo, e faz pensar: está satisfeita com seu trabalho? sente que falta alguma coisa na sua vida? acredita que pode realizar seus sonhos, mas antes precisa juntar dinheiro? sente que sua vida está sendo controlada? você controla sua vida? e a pergunta fatal: qual é o seu preço? Após assistir, não houve discussão ou questionamentos, de minha mãe apenas um comentário: “achei que ele fosse mudar as coisas”.

Outro dia assistimos juntas, mãe e filha, o filme O Quarto de Jack. Depois dos créditos fiquei pensando: como faço para ela parar de chorar? O filme narra a história de uma jovem mulher sequestrada e mantida em um galpão num quintal comum, é estuprada por muitos anos até engravidar e ter seu filho, Jack. O menino é criado com toda essa limitação do quarto, porém com imaginação, sensibilidade e amor, até conseguir escapar do agressor numa sequência de surpresas, reviravoltas e dramas.

Vendo essa relação, memórias vividas foram tomando minha mente.

Quando criança, morávamos em uma casa pequena. Uma casa pequena com um quarto pequeno onde eu dividia a cama pequena com minha mãe. Minha irmã dormia em outra cama, pequena. O banheiro que também era pequeno tinha a caída do piso no sentido contrário ao encanamento, e tínhamos que ser vigilantes no banho para a água não escorrer casa adentro. Noutro cômodo que dividia cozinha e lavanderia, havia um pequeno espaço onde colocávamos um pequeno colchonete no chão e, nos dias bons, passávamos algumas horas ouvindo de nossa mãe histórias da bíblia (surpresas, reviravoltas e dramas) e ela nos ensinava louvores da harpa cristã. Nos dias ruins, eu e minha irmã brincávamos com um minimercado da Barbie e uma família de ratinhos com roupas campestres, sempre com mímica; com gestos mudos, não despertávamos o sono de morte de nossa mãe, sono reparador-profundo.

Como para o pequeno Jack do filme, aquela casa era tudo o que eu tinha. Os móveis, alguns brinquedos e roupas, tudo era presente de domingo. Não posso dizer que passei falta de nada, mas por muitos anos aquela casa me limitou a pensar que o mundo era aquilo, algumas horas de alegria, alguns dias de silêncio e um mundo apertado que não me cabia. Eu saí de lá, e não quis mais voltar.

Minha mãe também já viveu uma versão do personagem Jack do filme. Nos dias bons, ela sempre contava como era sua infância de filha de pastor da Assembleia de Deus, seu mundo era restrito a igreja e as tarefas de casa, aos 12 foi tirada da escola para trabalhar, cumpria suas obrigações de filha, serva obediente e temente à Deus, e funcionária de fábrica de calçado. Até conhecer meu pai.

Ela sempre enfatizava como aqueles poucos anos juntos foram os mais felizes de sua vida. Ela conheceu a banda Legião Urbana, assistiu Almodóvar e leu Sidney Sheldon. Ela dançou pela primeira vez, e pode cortar seus longos cabelos crespos que antes viviam trançados. Usou um jeans pela primeira vez e viajou para o Rio e Paraguai - dava para eu sentir o frescor da água das cataratas do Iguaçu quando suspeitava suas lembranças daquela viagem. Minha mãe conheceu o amor e a beleza que havia em si, mas porque viveu muito tempo no “quarto”, não soube resistir e existir do lado de fora.

Hoje percebo seu anseio ao olhar a porta para onde Platão aponta saída. Acho que minha mãe lê isso: será que fico ou saio?  No fim de cada filme ou série, caminhamos para o início de mais surpresas, reviravoltas e dramas - porque a vida pede arte.

Quando materializo meus significados em signos, como fiz com essa lembrança catártica, alcanço um destino terapêutico para meus questionamentos e sentimentos. Não consigo separar a autora da narradora talvez porque ainda não me desprendi totalmente do quarto, e volto sempre deitada naquele colchonete pequeno, na quase sala da casa pequena. Ou porque acredito que contar sobre minha vida pode despertar em alguém a vontade de atravessar a saída para um mundo grande, cheio de coisas grandes e reais. Ou talvez seja por ego, quem poderia me julgar?!

Eu nunca pensei em ser escritora, meus amigos dizem que é chic ser cronista e meus leitores se identificam com minhas histórias. Então prossigo, na esperança de abrir a porta para outros Jacks. Continuarei a narrar os acontecimentos que me tocam, assim como continuarei com o projeto com minha mãe, aspirando um dia fechar de vez a porta do quarto pequeno. Desejo que a cada sessão, a nobreza de possibilidades infinitas para Jack, para mim, minha mãe e para você leitor, exploda o pequeno quarto e nos entrelace num tricot de eternidade, e que a cada momento aqui compartilhado seja uma porta de saída para um mundo grande e real.

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