NOSSAS LETRAS

As famílias de Pantanal

Na casa que somos enquanto humanos, emoções não cessam de transitar. Vêm e vão. Entram e saem. Voltam quando menos esperamos. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 25/06/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” A frase é de Liev Tolstoi e com ela o escritor russo começa Anna Karenina, pulicado em 1876. Um ano depois, antes de morrer, o escritor disse à sua mulher Sofia que o tema que o conduzira no romance era a família. Ela registrou isso em seu diário.

Pensei na abertura deste livro ao refletir sobre a novela Pantanal. À parte a distância estratosférica entre São Petersburgo e Mato Grosso, as famílias que compõem as duas narrativas guardam a similaridade da infelicidade. O mundo mudou desde que Anna se jogou sob um trem em movimento. Mas as dificuldades do relacionamento amoroso e familiar, se nos despimos de qualquer julgamento moral, continua o mesmo neste nosso século. 

Na casa que somos enquanto humanos, emoções não cessam de transitar. Vêm e vão. Entram e saem. Voltam quando menos esperamos. Bagunçam tudo, dão sacudidas na ordem, nos obrigam a agir. Às vezes amamos, outras odiamos quem conosco convive. Influenciados pela cultura cristã, não nos apraz admitir isso. Mas é verdade. Humanos são muito complicados. Benedito Rui Barbosa e seu neto Bruno Luperi, respectivamente autores da primeira e segunda versão de Pantanal, souberam abordar a questão com a sensibilidade de quem escreve observando a natureza humana.

A trama é sustentada por vários núcleos familiares. Começa com o da tresloucada Madeleine, sua mãe autoritária, o pai interesseiro, a romântica irmã Irma. A gênese da novela está ali, por isso o espectador é apresentado a ela nos primeiros capítulos.

O núcleo de Zé Leôncio é abrangente e o centro da saga. Cada um de seus filhos tem uma mãe e chegaram à vida do fazendeiro já criados, de forma que este encontra grande dificuldade em se relacionar com os três. Vive há muito tempo com Filó, a quem trata mais como empregada do que mulher. O excepcional desempenho de Dira Paes torna a personagem inesquecível. Seja pelo amor que dedica ao seu homem e ao filho Tadeu, seja pelo exercício da ética naquele mundo meio selvagem, seja pela capacidade de acolher e agregar. É sábia, mas se submete a um relacionamento que não está à altura do que ela merece. Nessa fazenda onde peões parecem mais agregados, a urbana Irma chega trazendo consigo lembranças da irmã morta, uma paixão antiga pelo cunhado, zelo e carinho em relação ao sobrinho Jove.

Outro núcleo é o de Tenório. Homem sem escrúpulos, traz à baila situação que não é inusitada na vida real. Representante máximo do machismo, tem duas famílias. A matriz no Pantanal e a filial em São Paulo. Ao saber da existência da rival, a mulher oficial enche-se de ódio. De ofendida e humilhada o tempo todo, a começar pelo apelido com que sempre foi tratada pelo marido (Bruaca), encara a traição e, movida por sentimento de vingança, dá vazão à sua sexualidade até então contida. Bruaca, interpretação magistral de Isabel Teixeira, foi eleita a personagem favorita das espectadoras.

Das mulheres da novela, a jovem engenheira Guta, filha de Tenório, é presença moderna, objetiva, verdadeira, bem articulada, desejosa de mostrar à mãe seu direito de fazer uma inflexão na vida miserável que leva. Guta é a mais saudável das vozes femininas nesse coral onde as urbanas ou rurais, adaptadas ou incomodadas, inseguras, angustiadas, melancólicas, medrosas, equivocadas, traumatizadas, carentes estão o tempo todo vivendo relacionamentos difíceis.

Há outras. A muda que fala, Rute, do núcleo de Leôncio. A empregada que tudo vê, Zefa, da casa de Tenório. E duas prostitutas apenas nomeadas, respeitáveis e fortes sob o olhar do neto e filho Zé Lucas, peão-poeta pantaneiro que diz coisas como “lugar de mulher é onde ela quiser”. Sua família foi um puteiro, como ele mesmo diz, onde homens diversos iam assumindo efêmero papel de pai.

Resta falar da família Marruá, representada por Juma. Nascida e criada numa tapera incrustada na fazenda de Leôncio, seus pai e mãe foram ali assassinados e ela por muito tempo viveu sozinha. Entende-se que se comunique mal e revele uma crença herdada da mãe, a de que nenhum homem presta, melhor conviver com os bichos. Juntando à beleza o estigma de virar onça quando enraivecida, vive aos trancos e barrancos com seu amor civilizado, o Jove. Ela não quer se casar nem ter filhos; seu maior sonho é continuar morando com o namorado na tapera. Talvez na sua intuição de mulher primitiva, perceba que formar família significa não só alegrar-se, mas também sofrer. Contudo, o instinto deverá ser mais forte, o amor resiliente, e o sentimento gregário impositivo na sua decisão de se ligar a um Leôncio e formar sua própria prole. 

A ver. Porque a história está apenas no meio. Por enquanto a alegria só aparece a conta-gotas nas famílias pantaneiras que, infelizes a seu modo, todas as noites motivam comentários de milhões de espectadores que agora palpitam também nas redes sociais. Tem imagens lindas, moda de viola, cenas espetaculares, um velho que vagueia pelo rio, Almir Sater na chalana e seu filho na viola, como um bruxo que conversa com o demo. Isso conta pontos. Mas são as emoções transmitidas pelos atores, a saga que enreda uns a outros, os diálogos naturais e consistentes, e a vida rural como a mantemos no imaginário coletivo, que mais atiçam o público. A audiência excelente tem ficado na faixa dos 31 pontos, alavancando o horário nobre da Globo.

A telenovela, elemento forte da nossa cultura popular, segue firme na preferência quando trata com sensibilidade questões que dizem respeito a todos que entendem ser apenas ilusão publicitária aquela imagem feliz da família tomando café da manhã e passando margarina no pão.

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