NOSSAS LETRAS

Conta-gotas

Em frente à pia com o copo na mão a impaciência vai me consumindo como se eu tivesse que deter o apocalipse do dia. Leia a crônica de Júlia Gonçalves.

Por Júlia Gonçalves | 18/06/2022 | Tempo de leitura: 2 min
especial para o GCN

Em frente à pia com o copo na mão a impaciência vai me consumindo como se eu tivesse que deter o apocalipse do dia. Os olhos acompanham o conta-gotas do frasco ao cair no copo, formando uma mancha dançante, valsando até amalgamar-se à água. Na sétima hora, do quarto passo, a inquietude dessa morosidade trouxe-me à memória uma conversa de salão. Minha irmã é excelente profissional, mãe dedicada e, penso eu, uma boa esposa. Formou sua família e devota-se a ela com muito amor. Isabel leu Clarice e se identificou com a narração simples do cotidiano de toda gente. Conheceu Macabéa e nela enxergou o vazio coletivo da ignorância, não houve estranheza e nem prazo para contemplação, ela preferia admirar outras estrelas inclinadas à ascensão e que não morriam. 

No parlatório, Isabel suscitava uma história de família, algumas memórias que dividimos na infância. Em certo ponto da conversa, depois de transitar por dramas e comédias do mundo divino, um nome escapou de sua mente, na sua dúvida indagou, qual é o nome daquele remédio que se tomar mais de 10 gotas a pessoa morre?

Já foram 15 gotas. Um meio riso nos meus lábios mostrava total desprezo pela morte. 17, 18, 20, o espetáculo de gotas bailando findou-se. 

Com o copo na mão, pensava no equívoco de minha irmã sobre a dose certa da roca de fiar do século XXI. Não vivíamos debaixo do mesmo céu e, portanto, não reverenciávamos as mesmas estrelas. Ainda sem beber a poção, olhei para meu reflexo turvo na torneira da pia, esforcei-me para me ver pela última vez antes de morrer naquela noite. Não me vi, pensei em minha irmã, pensei em Macabéa.

Isabel construiu uma fortaleza em torno de si, ela é um edifício assegurado por grande tapume. Nada anômalo adentra seus portões, tudo o que desordene sua ciranda fica do lado de fora. Mas para Isabel, resistir em um domo é uma escolha consciente. Macabéa não tem escolhas, sua grande sorte foi encontrada na morte e depois disso nada mais era, nem mesmo uma estrela. 

Ainda parada com o copo na mão pensei nas 10 gotas de decesso, vi meu corpo estirado no chão e toda a honra que o fim da vida traz. Macabéa e Isabel jamais saberiam a dose fatal do meu veneno, uma por inocência a outra por descrença. Nós jamais nos alcançaríamos. 

Bebi o dobro do alarmante num gole só, realmente tinha um gosto fúnebre. Deitei-me e, como presente, tive o sono dos justos, ou dos enfadados. Despertei com o beijo de traição da morte. 

Desapontada, abri as janelas, preparei um café e encenei o cotidiano, esperando que chegue logo a minha hora de ser estrela.

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