NOSSAS LETRAS

O coração das trevas

Foi defendendo índios e meio ambiente que Dom e Bruno tinham sido assassinados, descobriu-se dias depois. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 18/06/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Na manhã do domingo, 5 de junho, a notícia do desaparecimento, no extremo oeste da Amazônia, de um jornalista inglês e um indigenista brasileiro, já trazia inquietação. O passar dos dias desvelaria assassinatos violentos, ocorridos nas proximidades de São Miguel, lugarejo de onde haviam partido, rumo à sede do município de Atalaia do Norte, Dom Phillips, correspondente do jornal britânico The Guardian, e Bruno Pereira, funcionário afastado da Funai. 

O primeiro colhia material para um livro sobre abusos contra índios e devastação da floresta; o segundo prosseguia naquilo que considerava missão: defender os nativos dos ataques de exploradores de minérios, madeira, caça e pesca.

Nas buscas que se seguiram no entorno do primeiro suspeito do desaparecimento, foram encontrados pirarucu congelado e seco, tartarugas-da-amazônia vivas e mercúrio, substância tóxica usada em garimpos. Mercadorias como essas são comumente usadas em escambo na contrapartida de armas e drogas, envolvendo criminosos da Colômbia e do Peru, países limítrofes do Brasil. Atrás de crimes ambientais quase sempre há rede de traficantes que movimentam milhões e para os quais qualquer um que se oponha ao negócio ou o denuncie pode ser morto.

Foi defendendo índios e meio ambiente que Dom e Bruno tinham sido assassinados, descobriu-se dias depois. A procura pelos corpos trouxe fatos estarrecedores. Com a ajuda dos índios, policiais encontraram primeiro documentos, eletrônico, remédios, roupas, tênis e mochila presos a galhos submersos na margem do rio Itaqui. Com a confissão de um dos assassinos, soube-se que Dom e Bruno haviam sofrido violência inominável, sendo baleados, esquartejados, queimados e enterrados a três km da margem do rio Javari, lugar de difícil acesso na selva. “Oh horror, oh!”, diria o protagonista do romance de Joseph Conrad.

Riberinhos, fazendeiros, garimpeiros, indígenas, quilombolas, ambientalistas, defensores de direitos humanos, prefeitos e promotores públicos que moram ou atuam na região, que é uma das mais tensas e ameaçadas da Floresta Amazônica, sabiam o que significava a ação hedionda e não incomum na região. Onde não há corpo, não há crime. E ainda dizem que os brancos é que são civilizados. Montaigne mais uma vez deve ter se revirado na tumba.

Como muitos outros, os dois ambientalistas sucumbiram às “mazelas, crimes, malfeitos e apoios políticos irregulares que acontecem costumeiramente na Amazônia”, segundo o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva.  Essa rotina macabra talvez possa ser mudada a partir de agora, já que as duas mortes ganharam os holofotes do Guardian, ou seja, estamparam o horror para o mundo, que anda olhando cada vez mais indignado para a falta de respeito, apoio e defesa do Estado brasileiro em relação à floresta amazônica e aos povos indígenas.

Temos a legislação ambiental mais moderna do ocidente. Mas não temos ação, fiscalização, competência, interesse para fazer cumprir a lei, de forma que a Amazônia se tornou órfã do amparo estatal. Onde não há Estado, surge o crime organizado.

Desde tempos coloniais, a questão do que fazer com a parte da população que sobreviveu aos trágicos primeiros encontros com os dominadores europeus levou a uma relação muito ruim entre Estado e tribos. Nosso país continua a ser incapaz, em pleno século XXI, de cuidar dos verdadeiros donos da terra. Práticas desumanas têm sido empregadas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter mesmo sob ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros. Um deles, o chefe de nosso país. Em relação à Amazônia e aos povos indígenas, o presidente vem revelando desde o início do mandato sua estreiteza de pensamento em comentários bizarros nos quais define os índios como preguiçosos e indolentes cujo peso ele calcula em arrobas, medida usada para animais. À bizarrice, alia inequívoco interesse pessoal: sua inação na Amazônia lhe confere votos junto a grupos interessados nos negócios que a floresta pode oferecer. Foge à sua responsabilidade, não cumpre o dever constitucional de assegurar os direitos de grupos indígenas nos seus locais de origem, nem de defender a área mais importante para a manutenção da vida no planeta.

Pela incapacidade de entender isso, ao ser avisado sobre o desaparecimento de Dom e Bruno, a primeira reação da mais alta autoridade do país foi atribuir culpa às vítimas, e depois desqualificá-las, expediente de que lança mão constantemente. Sugeriu que eram aventureiros avançando sobre região interditada. Mais uma de suas mentiras. Eles eram profissionais reconhecidos pela seriedade de seu trabalho e tinham autorização da Funai para se conectar com tribos deles já conhecidas.

É dessa forma deformada que o atual presidente do Brasil trata tudo o que não reconhece como parte de seu narcisismo. Não tem nem nunca terá espírito de estadista preocupado de fato com o coletivo, as pessoas, o país. Está ao lado do “povo da mercadoria”, que é como os índios chamam aos invasores de seu território.

Há mais de um século, em 1908, o escritor Alberto Rangel publicou um livro cujo título é Inferno Verde, prefaciado por Euclides da Cunha. São onze contos onde o autor busca retirar o véu paradisíaco de sobre a floresta e mostrar como nativos, exploradores e estrangeiros, sob o olhar alienado do poder público, protagonizam histórias onde a cor do sangue tinge cotidianamente o verde da floresta. Nada mudou desde então. Ou melhor, mudou para pior.

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