O primeiro verso de poema de Fernando Pessoa: “A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; mas hoje, vendo o que sou é nada, quero ir buscar quem fui onde ficou.”, justifica a paixão de tantos adultos por crianças, minha particularmente, e admiração por sua espontaneidade, franqueza e presença de espírito.
Há anos coleciono frases ditas por crianças da família ou copiladas de livros e revistas, que demonstram e provam o nível de seriedade, lógica e complexidade do pensamento infantil. Criança é coisa séria, por mais engraçada que seja. Quando o governo de qualquer país descobre isso prioriza a educação, valoriza a escola, coloca professores competentes para ensinar e o país vira uma Dinamarca, Suécia, Finlândia, Islândia ou Noruega. Se o adulto tivesse hábito de observar crianças, reformularia sua maneira adulta e parcial de ver, julgar, avaliar, definir, priorizar pensamentos e atitudes.
Clara faz amiguinho na praia. Idades iguais, o fato de terem nacionalidades diferentes e falarem línguas incompreensíveis entre ambos, não lhes impede a convivência ou compartilhar brinquedos. Dirigem-se aos pais cada qual na língua original, enquanto se observam mutuamente. Entre elas usam linguagem gestual, algumas frases de suas próprias línguas e ficam horas juntos, fazendo monte de areia, casinhas, castelos. De vez em quando, vão se molhar. Ao ver o diálogo fluente entre mãe e filho estrangeiros, Clara se empolga, levanta-se, vai até a mãe e solta uma série de palavras inventadas na hora, imitando a sonoridade que percebeu da língua do outro. Frase longa de tatibitates, totalmente sem sentido. Entusiasmada, volta-se para a mãe e pergunta: “Mãe, o que eu falei?”
A babá adoeceu, a mãe disse para as filhas entrarem no carro, iriam levar a babá ao posto. Dúvida: “Se puser gasolina nela, ela sara, mãe?”. “Não suporto ver seu quarto bagunçado!”, reclama a mãe. Resposta do filho: “Então apaga a luz, mãe!”. Vingança: “Vó, quando eu tinha oito anos de idade, o cachorro do Zé (vizinho) vivia fazendo cocô no jardim de casa; um dia eu fiz cocô no jardim dele!”. Dois bilhetes. Bilhete um: “Estou com raiva de você e não vou falar com você hoje e amanhã. Ps: o dia todo. Pps: Eu ainda te amo.”. Bilhete dois, nos moldes dos escolares, deixado na cabeceira da cama da mãe que ralhou com ele: “Acho que você não gosta mais de mim. Escreva abaixo 'Sim" ou "Não", e assine, por favor.” Francano engole o "s" das palavras no plural. A avó alertou que a netinha devia colocar sempre o "s" no final de cada palavra, quando fosse o caso. Assim: “a casa, as casas”; “a boneca, as bonecas”. Estavam no jardim, passarinhos se aproximaram. A menina se entusiasmou: “Olha, vó, os passarinho”, olhou para a avó e completou: “ssssss”. Elas foram à feira, a avó pergunta ao feirante: “Por favor, quanto custa a caixa de uvas?” À resposta, a neta achou caro e emendou: “E sem a caixa?”. Na padaria a funcionário gentil ofereceu ao menininho pão de queijo recém-saído do forno. Depois que ele comeu, a avó lembrou-lhe de agradecer à moça pela gentileza. “Como fala para ela?”. Sem hesitar, ele respondeu: “Me dá outro?”.
Se pudéssemos resgatar a criança criativa e simples que fomos um dia; se voltássemos a ter olhos que enxergam a verdade por trás de todas as situações; se conseguíssemos falar qualquer verdade, mesmo a mais dura delas, sem ofender pois dita espontânea, franca e sinceramente; se alcançássemos o alto grau de complexidade do pensamento infantil, mesmo que aparentemente simples ou a perspicácia para analisar o lado oculto e intangível de tudo que nos parece real, o mundo seria um lugar mais agradável de se viver.
Adoro criança!
Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.
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