NOSSAS LETRAS

Sobee

Houve tempo, muito tempo atrás, em que a soja produzida em São Joaquim e arredores era exportada para os Estados Unidos. Leia a crônica de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 11/06/2022 | Tempo de leitura: 3 min
especial para o GCN

Houve tempo, muito tempo atrás, em que a soja produzida em São Joaquim e arredores era exportada para os Estados Unidos. Beneficiada, retornava ao Brasil com outro nome. Virava leite em pó e era usado na dieta de crianças com má absorção intestinal, agravada pela intolerância a produtos de origem animal. Leite de soja não tinha sabor tão agradável quanto o do leite de coco, de amêndoas e outros modernos. Nem sabor, nem cheiro. Porém as crianças, ao contrário do que as mães pensam, se costumam facilmente com as novidades. E as crianças que precisavam, tomavam aquele leite com apetite e prazer.

Chamava-se Sobee, era vendido apenas em farmácias e vinha numa lata dourada, bonita até. Volta e meia o Sobee sumia das prateleiras das farmácias e as mães se desesperavam. Previam tragédias: nada é tão doído quanto perceber o filho chorar de fome, ainda mais sendo lactante frágil. A sorte é que o ser humano se acostuma com tudo. Com o que é bom, com o que é ruim – pelo menos em se tratando de paladar. Não fosse assim, só uns poucos comeriam jiló ou jurubeba, por exemplo. Se bebê tivesse controle de qualidade rejeitaria leite de soja... Mas criança se acostuma facilmente com dietas esdrúxulas... ainda mais com fome. Volta e meia o Sobee desaparecia do mercado e provocava corrida às importadoras, às farmácias do país inteiro. Sem meios de comunicação mais rápidos e eficientes recorria-se ao telefone, ao radioamador, ao fax, meios de comunicação da época. E o grito de socorro das mães clamando pelo Sobee singrava os ares. Em casa tínhamos um consumidor de Sobee, produto fornecido pela farmácia do sr. Manoel, que ficava na avenida Presidente Vargas. Nunca deixei o estoque doméstico do leite abaixar muito, porque a dieta do meu bebê era restrita e eu seguia à risca as prescrições do médico. 

Naquela semana o estoque foi abaixando, abaixando, o bebê pareceu perceber e passou a reclamar duas ou mais mamadeiras extras. Fiquei apavorada. Literalmente. Sr. Manoel me pedia calma, minha mãe garantia que tudo se resolveria, minha sogra rezava muito. Naquela noite previ que sobrariam apenas lata e meia, descontadas as mamadeiras do dia. Meu estoque estava quase desaparecido. Não seria suficiente nem para o dia seguinte.

Chorando de medo, fui atender à campainha da frente da casa. Era senhora, da minha idade, com menino agarrado à sua saia e embrulhinho encostado ao colo, que presumi ser seu bebê. “Você é Lúcia?”, perguntou. Confirmei. “O médico que os atendeu disse que você pode me ajudar.” “Como?”, perguntei. “E veio a resposta: “Me arranjando uma caixa de Sobee, porque meu bebê está desidratado, com fome e com diarreia e só pode tomar esse leite.”

Pedi licença, deixei a mulher no alpendre, entrei, chorei, chorei, blasfemei. Voltei ao portão com a última lata de Sobee na mão. Entreguei a ela e expliquei que só tinha aquela inteira, mas que ela me deixasse o endereço para a eventualidade de conseguir mais. Ela agradeceu, foi embora, deixou o endereço, esqueci de perguntar o nome do médico que entremeou a transação. Entrei novamente a tempo de preparar a penúltima mamadeira com o restante do material: só dava para mais uma: a da madrugada.

“Que Deus nos abençoe”, pensei.

Dali a pouco, coisa de meia hora, tarde da noite, a campainha soou. Fui atender, era o sr. Manoel, pessoalmente, que vinha com o carro abarrotado de caixas de Sobee, chegadas dos quatro pontos do Brasil, ao mesmo tempo. Estava assustado e emocionado: sabia do meu apuro. Eu chorava. Tentei, mas não consegui localizar a outra mãe.

Ainda hoje penso nela e acredito que naquele momento marcou lindo milagre que testemunhei.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Angela
    02/02/2023
    Chorei com você. Minha filha tomou Sobre até os 9 anos. Passei por mesmo desespero. Parabéns pela atitude.