NOSSAS LETRAS

De volta à vida

Era uma noite fria de começo de inverno, quando a mínima brisa toca o rosto como faca afiada. Leia a crônica de Julia Gonçalves.

Por Julia Gonçalves | 04/06/2022 | Tempo de leitura: 2 min
especial para o GCN

Era uma noite fria de começo de inverno, quando a mínima brisa toca o rosto como faca afiada. Numa cidade pequena onde a calma espreita a ansiedade, o frio corre no meu corpo no sentido contrário ao tempo dessa atmosfera.

Na praça central, dentro da matriz, observo os santos espiando minha aflição. Levando apenas a verdade da fé de Aquino, sussurro uma oração e volto meus passos sob os olhares desconfiados dos fiéis.

No primeiro degrau da singela escadaria, da igrejinha tenho uma visão amplificada da juntura do território. Desço sustendo na liga do estômago com o coração o presságio, e no mais escovado do rossio se perfaz meu anseio. Sentada num banco de cimento gelado, descortinando a neblina que já me envolve, apego-me às silhuetas de cachorros vadios. Ao menor descuido, me encontro lado a lado de mim mesma criança, real e palpável como as poucas estrelas que iluminam o céu. Suspensa, escutando a doce voz dela contando grandes histórias de uma vida que estreia.

Inspiro e expiro o ar como quem pari, concebendo a simetria do prisma temporal daquele encontro. Embriagada de sensações, e com um nó na garganta, a memória da Júlia Vitória com vestidos longos de alças sempre pendendo aos ombros; dançando e distribuindo seu coração com paixão, a grandeza e a coragem da criança me consumiram num ímpeto de primeiro mergulho em cachoeira frio e consciente.

Como Alice, despenco no buraco do coelho e tonta corro, ora grande ora pequena, por jardins e salas de chás obsessivas. São tantas cenas, tantas pessoas me arrastando até o julgamento que me condena pelo pecado de colorir de carmim a vida, que rasgo no meu corpo a dor que me protege e me destrói.

Desperto no banco de cimento gelado e me apego as confidências de minha semelhante, a menina que fui e que vejo fitam em mim um olhar seguro e reconfortante. Me despeço dela com saudade, mas grata pela caminhada juntas e pelo encontro libertador.

Na estrada de volta, caminho para a realidade do cotidiano, arremesso longe as lâminas da solidão que me vestia. No carro, aconchego-me no banco de quem vai de carona e no retrovisor enxergo a pequena Júlia, agora Gonçalves com o ponche a pender nos ombros, dançando imponente e corajosa de volta a vida.

Júlia Gonçalves, canceriana e familiar do gato preto Tonico, tem 27 anos e nasceu em Franca. Formada em Letras pela Unifacef, pesquisa o universo pop com a mesma paixão que fez Clarice perto do coração selvagem.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.