NOSSAS LETRAS

O que mais dói

Antônio Gonçalves da Silva ficou cego do olho direito aos quatro anos, quando contraiu sarampo. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 04/06/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Antônio Gonçalves da Silva ficou cego do olho direito aos quatro anos, quando contraiu sarampo. Aos oito, com a morte do pai, passou a ajudar a mãe e o irmão na pequena roça da família. Aos doze, frequentou durante alguns meses a escola rural precária na qual foi alfabetizado. Ali começou a fazer repentes, arte popular que sobrevive e se apoia na poesia oral, sendo comum no Nordeste desde o começo do século passado. 

Dado o sucesso que obtinha, começou a se apresentar em festas. Por volta dos vinte anos ganhou o pseudônimo de Patativa de Assaré. A musicalidade de seus versos era comparada à beleza do canto do pássaro conhecido por patativa; o adjunto adnominal vinculava o artista ao seu local de nascimento, pequeno município cearense que conta hoje 20 mil habitantes.   

Mais tarde, indo constantemente à feira do Crato, onde participava de um programa de rádio declamando seus poemas, foi ouvido pelo proprietário da emissora que lhe deu apoio para a publicação do primeiro livro, Inspiração Nordestina. Era 1956. O opúsculo teria uma segunda edição, com acréscimos na década seguinte, passando a se chamar Cantos do Patativa. Em 1970 é lançada a coletânea Patativa do Assaré: novos poemas comentados.  Em 1978 aparece Cante lá que eu canto cá. Os outros dois títulos, Ispinho e Fulô e Aqui tem coisa, foram publicados em 1988 e 1994. Com diversas premiações, títulos e homenagens chegou ao ápice do reconhecimento ao receber de cinco universidades o título Doutor Honoris Causa. Modesto, afirmava nunca ter buscado a fama, nem ter tido a intenção de ganhar dinheiro com seus versos. Permaneceu agricultor e continuou morando toda a vida na mesma região onde se criou.

Casado com Belinha, com quem teve nove filhos, faleceu em 2002 na mesma cidade onde nasceu. Tinha 95 anos e enorme popularidade, sobretudo no Nordeste.

Os poemas dos repentistas são criados e guardados na memória, para depois serem recitados. Assim, a transcrição para os meios gráficos corre o risco de perder boa parte da significação expressa por meios não-verbais. Voz, entonação, pausas, ritmo, gestos e expressões faciais realçam traços marcantes no ato da performance. É o caso da ironia, veemência, hesitação, deboche, humor, indignação. Etc. 

A complexidade da obra de Patativa desvela-se também pela sua capacidade de criar versos tanto nos moldes de Camões, de que são exemplares os sonetos na forma clássica; como na facilidade com que produziu versos de rima e métrica populares. Ele próprio diferenciava seus versos feitos em linguagem culta daqueles onde predominavam a décima e a sextilha, denominadas por ele “poesia matuta".

Dentre suas temáticas, a crítica social nunca deixou de se fazer presente. Vivendo na pobreza, da mão para a boca; testemunhando os desmandos dos latifundiários; compassivo diante da miséria de sua gente; indignado com os políticos insensíveis que ignoravam as necessidades básicas do povo, Patativa do Assaré criou sonetos cuja atemporalidade surpreende. É o caso de O que mais dói:

“O que mais dói não é sofrer saudade/Do amor querido que se encontra ausente/Nem a lembrança que o coração sente/Dos belos sonhos da primeira idade.//Não é também a dura crueldade/Do falso amigo quando engana a gente,/Nem os martírios de uma dor latente,/Quando a moléstia o nosso corpo invade.//O que mais dói e o peito nos oprime,/E nos revolta mais que o próprio crime,/Não é perder da condição um grau.//É ver os votos de um país inteiro,/Desde o praciano ao camponês roceiro,/Pra eleger um presidente mau.”

Patativa de Assaré faz aqui uma reflexão permeada por lamento frente a escolhas infelizes do povo brasileiro quando elege seus representantes políticos. De forma pungente, o poeta associa questões individuais, tangenciadas no apelo emocional, amoroso e nostálgico, a assuntos de ordem coletiva como cidadania, democracia, manipulação.

Releio o soneto de Patativa de Assaré quando estamos a quatro meses das eleições mais polarizadas de nossa história republicana. Ainda que entristecida com tanta ruindade assolando o país nos últimos tempos, alimento a esperança de que o Brasil não está condenado a ter de escolher entre os dois que estão à frente da disputa, conforme pesquisas recentes. Ouso pensar que milhões de brasileiros gostariam de livrar o País do populismo, porque este nos condena ao atraso. Também mantenho a fé na lucidez dos eleitores em busca de um candidato (ou candidata) que apresente um plano de governo capaz de reduzir nossa vergonhosa, brutal, indigna desigualdade social. E, claro, que aponte caminhos objetivos rumo à retomada do crescimento econômico, promovendo políticas públicas nas áreas de saúde, educação e meio ambiente. Se isso não acontecer, teremos de continuar dando razão a Patativa do Assaré. Porque tudo continuará como dantes. Doendo, doendo, doendo.

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