OPINIÃO

Até quando Franca vai tolerar a intolerância?

Junho começou. O mês é simbólico para a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Leia o artigo de Guilherme Cortez.

Por Guilherme Cortez | 05/06/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Junho começou. O mês é simbólico para a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, por conta do Dia Internacional do Orgulho LGBT que acontece no dia 28. Mas, apesar desse marco, Franca mais uma vez não tem nada a comemorar.

Na última semana, mais uma vez a cidade recebeu atenção nacional por um episódio lamentável. As imagens de uma jovem transexual e seu namorado sendo agredidos com socos e pontapés por um grupo de homens em pleno show da dupla Henrique & Juliano na Expoagro tomaram grande repercussão, foram notícia nos principais veículos de comunicação do país e mobilizaram figuras públicas como as apresentadoras Xuxa e Tatá Werneck, o padre Júlio Lancelotti, o ator Silvero Pereira, a atriz Camila Pitanga e a cantora Zélia Duncan, que manifestaram indignação com o ocorrido.

Segundo testemunhas, enquanto o casal era espancado um dos agressores bradava: “é travesti, tem que apanhar”. Na filmagem feita por pessoas que presenciaram a cena sem intervir, ainda é possível ouvir um homem justificando “é travesti, é travesti, sai fora” quando pessoas que tentavam apartar a violência e diziam para não bater em mulher. Nem elas foram poupadas de ofensas como “c(*)zão” e “vai dar a b(*)nda”. Apesar disso, o mesmo nega que a agressão tenha sido motivada por transfobia e intolerância. Nas entrevistas e declarações que deu desde o ocorrido, fez questão de reafirmar que tentou justificar que a vítima era travesti quando questionado sobre estar batendo em uma mulher.

Quando um indivíduo diz que qualquer pessoa tem que apanhar por conta da sua identidade de gênero ou justifica um ato de agressão pela vítima ser uma pessoa trans ou travesti, como se isso o tornasse aceitável, estamos diante de um caso de violência motivado pelo preconceito e discriminação – é o que se chama de transfobia. Um crime de ódio é um ato de violência fundado na intolerância, seja ela racial, religiosa, sexual, de gênero ou política. Isto é, um crime que não aconteceria – ou não aconteceria da mesma forma – não fosse a identidade da vítima.

Foi o que aconteceu na noite do dia 27 no parque Fernando Costa. Longe de ser uma ocorrência isolada, o episódio é um triste retrato da violência constante sofrida por travestis e transexuais. O Brasil é o país no mundo que mais mata pessoas motivado por sua identidade de gênero ou orientação sexual. A expectativa de vida média de pessoas trans é de apenas 35 anos, equiparado aos padrões da Idade Média.

O caso não foi o único envolvendo violência nesta edição da Expoagro. Uma semana antes, durante a apresentação do cantor Gustavo Mioto, uma mulher foi agredida com um soco no rosto por outro homem. Segundo familiares do agressor, o ato foi motivado por um empurra-empurra durante o show, tão comum em eventos desse porte. Depois, um sapateiro teve que levar 23 pontos por ser esfaqueado no show da dupla sertaneja Zé Neto & Cristiano.

Tantos episódios de violência durante o maior evento aberto ao público na cidade levantaram questionamentos sobre a responsabilidade dos organizadores da feira agropecuária, que é concedida por licitação pela Prefeitura de Franca. Um ato da proporção da Expoagro, que recebe dezenas de milhares de frequentadores em suas exposições e shows, precisa garantir a segurança dos presentes. Tantas ocorrências trágicas em sequência exigem que o evento seja repensado e que as autoridades assumam a responsabilidade. A violência não pode servir de atração e nem ser naturalizada, sob o risco de se tornar ainda mais corriqueira.

Ninguém deveria ter receio de ir a qualquer lugar pelo risco de sofrer algum ato de violência ou discriminação. Infelizmente, essa é a realidade de pessoas LGBTs, sobretudo trans e travestis, na cidade de Franca e em tantas outras. O simples ato de ir a um evento junto com o namorado e aproveitar um show ou andar de mãos dadas e beijar a pessoa que se ama em um local público, tão trivial para a maioria das pessoas, pode representar um risco enorme para a própria vida, como aconteceu com a vítima da agressão na Expoagro. Houve até quem questionou a participação da jovem em um espaço onde poderia ser agredida, ignorando que todas as pessoas deveriam ter direito e liberdade para frequentar qualquer lugar sem medo e qualquer local é potencialmente perigoso quando se é uma pessoa trans, como uma maneira de culpabilizar a vítima pela violência que sofreu.

Casos de violência praticados por intolerância ou discriminação são recorrentes em Franca. A cidade ostenta estatísticas perturbadoras de violência contra mulheres e tem colecionado casos cada vez mais brutais de feminicídios. Agressões físicas e xingamentos como os que aconteceram na Expoagro são frequentes para pessoas LGBTs. Ao invés de se debruçar sobre essa realidade e tentar alterá-la, a maioria das autoridades públicas da cidade faz pouco caso e boicota qualquer iniciativa nesse sentido, como quando os vereadores da Câmara Municipal rejeitaram um projeto de lei que pretendia instituir no calendário oficial uma semana voltada para a comunidade LGBT. Se sequer um marco simbólico no calendário foi aceito pelos nossos parlamentares, é difícil esperar que prosperem ações ainda mais urgentes e efetivas, como uma política municipal de segurança que garanta a proteção de todas as pessoas ou o combate ao preconceito e à intolerância nos espaços e esferas da cidade.

O caso lamentável que aconteceu na Expoagro deveria servir, no mínimo, para que as autoridades parassem a bola e começassem a refletir sobre a urgência de proteger as pessoas que aqui vivem, sobretudo aquelas que estão mais vulneráveis à violência, e sua própria responsabilidade sobre essas ocorrências.

Guilherme Cortez é advogado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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