NOSSAS LETRAS

Gente que vira onça

Humano se transformar em bicho faz parte de relatos populares que habitam a imaginação de sucessivas gerações de brasileiros. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 28/05/2022 | Tempo de leitura: 3 min
especial para o GCN

Humano se transformar em bicho faz parte de relatos populares que habitam a imaginação de sucessivas gerações de brasileiros, especialmente no norte, nordeste e centro-oeste. Repentistas, violeiros e contadores de “causos” colaboram para a manutenção das lendas que povoam a vida rural. Realidade e ficção se fundem também na literatura: o universo onde poetas e prosadores transitam é desvelado, pela via da palavra escrita, em termos do vernáculo e com a riqueza de neologismos como “oncismo”.

Cronistas e depois historiadores apontaram a partir do século 16 a expressiva onipresença de uma onça mítica nas Américas, entre povos de origens diversas e pertencentes a grupos linguísticos diferentes. Para o maior folclorista brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, a expressão “virar onça” se modela em sentidos que variam de tipos de comportamentos ligados à rudeza e ferocidade, até à astúcia, esperteza, dissimulação e poder.  A onça é força bruta, estupidez enérgica, arrebatada violência. Aparece nas histórias quase sempre associada a alguém em situação de penúria, miséria, desamparo. Caso de Maria e de Juma, protagonistas da novela Pantanal, de autoria de Benedito Ruy Barbosa, trinta e dois anos depois revisitada por seu neto Bruno Luperi.

Importante na saga, a onça aumenta os índices da audiência quando entra sinuosa em ronda, porque sua presença nutre uma metáfora, carrega-se de símbolos, equivale a sinônimo de mundo real que é ressignificado pela imaginação do espectador. Muito antes da novela, que estreou em 1990, a temática já aparecia em folhetos de cordel, cantoria de viola, relatos, narrativas, poemas, letras de canções sertanejas, música popular. De Luiz Gonzaga a Elomar, de Alceu Valença a Zeca Baleiro, de Lourenço e Lourival a Edu Lobo e Caetano Veloso, dúzias de compositores levaram o felino para seus repertórios. Na literatura, Monteiro Lobato já havia introduzido uma onça no primeiro de seus livros dedicados às crianças. Cora Coralina fez dela personagem aterrador num de seus poemas. Ariano Suassuna, fundador do Movimento Armorial, singrou as águas do onírico e do poético ao perfilar a onça Caetana no Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.

E num conto extraordinário, Meu tio, o Iauaretê, do livro Estas Estórias, Guimarães Rosa criou diálogo/monólogo entre matador de onças e interlocutor que apenas o ouve.  Apresentando-se como filho de índia com branco, o primeiro afirma que “desonçou esse mundo todo”, embora no presente sinta remorsos por ter compreendido que este animal estava vinculado pela ordem do sagrado às suas origens familiares. Sua fala funde sons onomatopaicos e nomes tupis, como “iauaretê”, que aparece no título e significa “onça verdadeira”.

No meio da conversa o onceiro revela que havia parado de matar os animais ao conhecer Maria-Maria, onça pela qual se apaixonou. Encantado por ela, com quem dorme desde então, começa a alimentar outras onças com incautos que por ali apareciam. Ao escutar isso, o visitante pega seu revólver. O onceiro lhe pergunta se ele estava ali para matá-lo ou prendê-lo.  E num súbito rugido vai se transformando em onça. A história termina sem que o leitor saiba quem morreu e quem matou.

Voltando a Pantanal, no início Maria Marruá virava onça, segundo os vizinhos, para proteger sua cria, a filha Juma. Esta, já adulta e órfã, faz o mesmo quando ameaçada. Graças à excelência da direção e do desempenho dos atores, tudo parece acontecer, aos olhos do espectador, naquela zona indefinida que é a ficção quando alça o campo da metáfora. Acompanhamos as cenas com atenção e curiosidade, pois sabemos que certas atitudes e alguns acontecimentos podem nos transformar em bicho agressivo. Mesmo. Um dia, o mais pacato dos seres pode virar onça.

Por mais civilizados que sejamos, pergunto-me se conhecemos de fato nossos limites entre o humano e o selvagem. E se somos capazes de conter o animal selvagem que nos habita.   

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