NOSSAS LETRAS

Amor é construção

Médico conceituado, Walter casa-se com moça da elite londrina, Kitti, pouco depois de conhecê-la. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 21/05/2022 | Tempo de leitura: 3 min
especial para o GCN

Médico conceituado, Walter casa-se com moça da elite londrina, Kitti, pouco depois de conhecê-la. Ele é um homem introvertido, que dedica sua vida ao trabalho. Extrovertida, ela leva existência preenchida com festas, vinhos e rosas.  Um se envolve com doença e morte; outra se dedica ao desfrute da vida. Não poderia dar certo. Você pode estar pensando que já assistiu a esse filme.

Os recém-casados seguem para Xangai, onde Walter vai continuar suas pesquisas sobre moléstias infecciosas. Tentam se relacionar bem. Mas ele mergulha nos seus estudos; ela sente falta do olhar masculino e do glamour da vida anterior.  É quando surge o vilão, Charles, um homem sedutor que a conquista. O marido descobre. Nada diz, apenas toma uma decisão. Pede transferência para o interior longínquo da China, onde sobreviver passa pela condição de suportar a pobreza extrema e evitar o contágio com vírus de peste que já dizimou metade da população.

Bem, este é apenas o começo de O despertar da paixão, de 2007, que a Netflix oferece aos assinantes e considero um dos melhores filmes que já vi no canal. Todo o resto da história é jornada de duas horas que não só envolve o espectador pela atuação estupenda dos atores Edward Norton/ Naomi Watts/ Liev Schreider, como pela deslumbrante fotografia e, claro, por questões provocativas com as quais o diretor John Curron lida com sutileza.

O filme foi baseado em romance de Somerset Maughan, dramaturgo e ficcionista inglês. Escrito em 1925, The painted veil foi traduzido para mais de vinte idiomas e até hoje se mantém firme no catálogo de algumas editoras porque conta saga atemporal, que fala de amor, engano, perdão e transformação. É pena que a tradução do título para o português esconda isso. The painted veil não significa O despertar de uma paixão e sim "O véu pintado". A frase foi retirada das páginas literárias: “Todas as relações começam debaixo de um véu pintado.”

Muitas vezes, pelo menos no Brasil, a tradução é feita desconsiderando a criação autoral. Como as distribuidoras preferem títulos de apelo comercial, alguém que nem conhece a obra inventa um título chamativo. Muito ruim isso, pois todo artista, ao criar título para sua obra, pretende no mínimo fornecer pistas sobre o tema.

Não quero dar spoiler. Desejo apenas registrar minha indignação por essa traição dos tradutores que buscam títulos que nada têm a ver com a história. No caso deste em questão chega a ser desrespeitoso. Porque nada existe no enredo que nos autorize a pensar numa paixão que renasce, mas sim na construção, nada fácil, do sentimento amoroso.

No romance, como no filme, a metáfora do véu pintado diz respeito ao perigo representado pelas ilusões, pelas falsas percepções.  Como um véu pintado, elas nos negam acesso ao genuíno conhecimento do outro, nos afastam da realidade. Impedindo-nos de entrar em contato com o que é verdadeiro, nos induzem a escolhas que podem ser trágicas.

Por outro lado, se nos permitimos retirar o véu que esconde a identidade de cada ser, podemos ganhar muito com a experiência. Ela pode nos conduzir a uma inflexão rumo a uma vida mais consistente com o que somos e os outros são. Tanto no romance como no filme, a trajetória dos protagonistas cumpre a função do desvelar-se.  Kitti percebe debaixo do véu que cobria o marido aos seus olhos, um homem sensível afetado pela dor dos seus pacientes; então, deixa-se tomar pela admiração, o primeiro passo para o amor.  Walter compreende que debaixo do véu que encobre sua mulher há carências afetivas que ele menosprezou de início, mas também vontade de ser útil, algo que a cultura esnobe de onde ela provinha aniquilava. Ambos se descobrem, se transformam, se entendem, passam a se amar de verdade. Seria tarde? Ou não?

Assista para saber.

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