NOSSAS LETRAS

No reino dos fungos

De vez em quando surge livro que revela um gênio. É o caso de 'A Trama da vida', escrito por Merlin Sheldrake, 35 anos. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 14/05/2022 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

De vez em quando surge livro que revela um gênio. É o caso de A Trama da vida, escrito por Merlin Sheldrake, 35 anos, cuja foto ilustra este comentário. Ele estudou biologia em Harvard e tornou-se doutor em ecologia tropical pela Universidade de Cambridge. Seu primeiro título repousa sobre extensa pesquisa a respeito de redes fúngicas subterrâneas nas florestas do Panamá. Por pertencer ao gênero científico, pode parecer à primeira vista que seja indicado apenas para especialistas. Nada mais enganoso. Lançado há menos de um ano, atraiu de tal forma o público leigo que já foi traduzido para mais de vinte idiomas. Não é pouca coisa. Em língua portuguesa, o responsável foi Gilberto Stam, da equipe da editora Ubu.

O que tem levado A Trama da Vida ao sucesso, inclusive de crítica, é a soma de informações novas sobre os fungos, assunto interessante pouco explorado na área, e o estilo do autor, parecido ao de um fluente contador de histórias. Escrever sobre ciência com jeito literário me remeteu a Freud, o criador da Psicanálise, que conquistou um Nobel de Literatura. Sheldrake parece ir nesse rumo.

Como afirma o autor nas primeiras páginas, “no meio científico, a imaginação pode ser confundida com especulação e, tratada com desconfiança nas publicações, costuma ser acompanhada de uma advertência obrigatória. (...) Vidas microbianas, especialmente aquelas enterradas, não eram acessíveis como o mundo vibrante e carismático dos grandes acima do solo. Na verdade, para tornar minhas descobertas vívidas, para permitir que elas contribuíssem para um entendimento geral, era necessário ter imaginação. Era impossível de outro jeito.”

Resumir o livro deste autor é difícil por mais que se tenha poder de síntese, tantas são as informações revolucionárias a cada capítulo. Dado o tom pedagógico, elas ampliam as antecedentes e vão mostrando uma realidade complexa mas entendível por todos ao longo de 360 páginas. Assim, uma das primeiras e necessárias noções apresentadas é sobre os protagonistas da obra, os fungos (mais as hifas e os micélios). Os fungos são organismos uni ou multicelulares agrupados no Reino Fungi, no qual se enquadram espécies como cogumelos, bolores, orelhas-de-pau e leveduras. As hifas são estruturas típicas dos fungos, surgem de esporos e crescem juntas e emaranhadas. A massa de filamentos de hifas forma o micélio.

Isso posto, somos informados sobre como certas espécies de formigas são teleguiadas por fungos que invadem seu corpo; raízes subterrâneas quilométricas formam redes como as da internet; alguns cogumelos agem no cérebro humano alterando a percepção da realidade; cupins infectados conseguem fornecer matéria prima para tijolos a embalagens.  Etc. Um vastíssimo etc, porque os fungos, capazes de feitos extraordinários, estão por toda parte. Nas águas dos rios; no fundo dos oceanos; sobre todas as superfícies; dentro de rochas e raízes; nos tanques de combustível; na minha barriga e na sua, leitor. Como não são egocêntricos, articulam-se, entrelaçam-se e formam parcerias com outros reinos, como o das algas e o das bactérias. Não há exagero em dizer que são responsáveis em boa parte pela vida. Por sua ação metabólica é que se obteve o primeiro pão, queijo, vinho. Não nessa ordem, porque segundo o autor, “no início foi a cerveja”.

Lendo a pequena biografia de Merlin Sheldrake, ficamos sabendo que desde criança ele se mostrou curioso pelos seres invisíveis. Com o tempo, os fungos despertaram sua paixão, e ele mergulhou de cabeça nesse mundo singular. Ainda na faculdade, fez bebidas alcoólicas a partir de receitas medievais. Depois se arrastou pelo solo de florestas tropicais coletando espécimes.  Passou incontáveis horas em laboratórios. Visitou e entrevistou outros pesquisadores. O livro resulta desse mergulho.

Na orelha sem assinatura, alguém muito lúcido escreveu: “Mais de dois milhões de espécies de fungos desafiam nossas ideias tradicionais de individualidade e de inteligência. Capazes de decompor poluentes e compostos químicos complexos, torna-se inegável que o poder de adaptação dos fungos fará deles personagens centrais na reorganização da vida humana necessária para aplacar a crise climática em curso.”

De forma poética, o escritor coloca em seu livro J.R.R. Tolkien, conhecido apreciador de plantas, especialmente de árvores. Os fungos micorrízicos (que se associam a raízes) encontraram lugar em O Senhor dos anéis, de que o autor destaca o seguinte trecho:

“Para você, pequeno jardineiro e amante das árvores, disse o elfo Galadriel ao hobbit Sam Gamgi, tenho apenas um pequeno presente(...) Nesta caixa há terra do meu pomar (...) se você ficar com ela e finalmente voltar para casa, talvez ela possa recompensá-lo. Embora você deva encontrar tudo devastado e infecundo, haverá poucos jardins na Terra Média que florescerão como o seu, se você espalhar essa terra lá.”

O papel dos fungos, desde que as plantas migraram das águas para a terra, começou a ser evidenciado há poucas décadas. E é bem recente a percepção de que a Terra e seus organismos, e não o Homem e suas sociedades, é que devem estar nesse momento no centro do debate pela manutenção da Vida.

   

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