NOSSAS LETRAS

Milagres

O teto havia desaparecido, uma parede lateral caíra ao chão, mas a outra parede onde estava pintado o mural estava, milagrosamente, de pé. Leia a crônica de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 14/05/2022 | Tempo de leitura: 3 min
especial para o GCN

A noite de 15 de agosto de 1943 foi noite de terror em Milão, na Itália. Nos dois últimos anos da Segunda Guerra Mundial o país perdera alguns dos mais ricos tesouros artísticos e históricos do mundo. Quadros de valor inestimável foram dispersados, esculturas insubstituíveis foram esfaceladas. As bombas incendiárias atearam fogo indiscriminadamente a arsenais de tanques e esplêndidos palácios renascentistas, a estações ferroviárias e teatros de óperas, a depósitos de aprovisionamento e a coleções de manuscritos antigos. Perguntava-se, e os peritos negavam, se poderia a Itália, o mundo, se refazerem um dia deste golpe aniquilador contra a herança cultural da humanidade? Ninguém acreditava. Mas fatos e a determinação italiana provaram o contrário.

Naquela noite, ondas de bombardeios aliados lançaram bombas com explosivos violentos, lançamentos seguidos de aviões que arremessavam bombas incendiárias. Praticamente inevitável, uma delas caiu perto próximo ao Convento de Santa Maria delle Grazie, outrora pertencente a mosteiro dominicano, abrigo do quadro mais famoso do mundo: a Ceia do Senhor, ou Il Cenacolo. Pintado por Leonardo da Vinci, o mural reproduzia o momento dramático e sublime em que Cristo disse a seus discípulos: “Um de vós há de me trair”.

Na manhã do dia 16, o refeitório onde os monges outrora faziam suas refeições estava reduzido a amontoado de escombros e ruínas fumegantes. O teto havia desaparecido, uma parede lateral caíra ao chão, mas a outra parede onde estava pintado o mural estava, milagrosamente, de pé. Precariamente protegida por sacos de areia, de algum modo conseguira sobreviver à explosão. A cobertura improvisada – um encerado – seria logo mais substituída por abrigo de papel alcatroado e continuou assim, até que, passada a guerra, cobriram-no com teto permanente. Nesse meio de tempo, chuva e neve haviam transformado a pintura numa massa gelatinosa: a areia dos sacos grudara à tinta e espessa camada de mofo cobrira toda a pintura. Achavam que a pintura estava irremediavelmente perdida. Porém Mauro Pellicioli, o maior restaurador de arte da Itália da época, tomou a frente e com equipe habilidosa e cheia de vontade, pôs-se a recuperá-la. Iniciou gratuitamente os trabalhos de recuperação do maravilhoso afresco, em abril de 1947.

Na mesma noite em que o Cenacolo foi atingido, bomba de altíssimo poder explosivo caía sobre o Scala, o mais famoso teatro de ópera do mundo. O teto com 165 anos de idade ruiu e, quando terminou o incêndio, os destroços queimados chegavam até ao nível da segunda fileira de camarotes. Um velho vigia, diz a lenda, lamentava: “Isso é o fim do Scala!”. A guerra nem tinha terminado, nos arredores de Milão já se faziam planos de reconstrução. Mas eles não queriam novo teatro. Queriam o velho, exatamente como antes, afirmava Luigi Lorenzo Secchi, o arquiteto responsável pela obra. O teto abobado, acreditava-se, era o responsável pela magnífica acústica do prédio e Secchi revolveu os escombros à procura de fragmentos de velhas traves. Usou fragmentos de tecido das cadeiras e pedaços de brocado de seda que cobria as paredes como amostras. O enorme candelabro de cristal, a partir de fotografias antigas, foi reconstituído. Cerca de um mês depois do fim da guerra começou a reconstrução do Scala. Oficinas e fábricas haviam ido destruídas, dezenas de milhares  de milaneses estavam sem casa, mas não houve um murmúrio de protesto pela prioridade dada ao Teatro Scala.

Na noite de 11 de maio de 1946, um homenzinho de cabeleira branca e rosto de traços bem delineados adiantou-se até o centro do palco do teatro de ópera reconstruído. A fim de verificar a acústica, bateu palmas com força e esperou o eco: “É o mesmo!”, disse. Arturo Toscanini, depois de oito anos de silêncio e exílio, ergueu a batuta e regeu novamente a orquestra junto com coral de 200 vozes.

Milão vivia novamente.

(Pesquisa feita num fragmento das Seleções Reader’s Digest, de Setembro de  1959, que sobreviveu a grande mudança.)

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