EDUCAÇÃO

Escola não é quartel

O governo estadual está realizando uma consulta às escolas de Franca para saber quais têm interesse em se tornar 'cívico-militares'. Leia o artigo de Guilherme Cortez.

Por Guilherme Cortez | 13/03/2022 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Reprodução

O governo estadual está realizando uma consulta às escolas de Franca para saber quais têm interesse em se tornar cívico-militares, nome que se dá ao modelo de gestão educacional compartilhada com as Forças Armadas. A primeira etapa é a identificação das escolas interessadas, a partir de mecanismos de consulta às suas comunidades. Depois, deve ocorrer uma avaliação de quais se enquadram nos critérios para receber o programa e uma aprovação formal pelas comunidades escolares, através de audiências públicas.

Muitos professores e estudantes têm denunciado, contudo, a pressão de pais e dirigentes escolares pela adesão ao programa. A Apeoesp, sindicato dos professores da rede estadual, já notificou a Secretaria de Educação para investigar as denúncias.

A Escola Estadual Mário D’Elia é uma das que está realizando a consulta. Segundo relatos em condição de anonimato, professores que se opõem à implementação do programa foram assediados e ameaçados por pais de alunos, sendo chamados até de “esquerdistas”. Na primeira versão do formulário online sobre a adesão, para a pergunta “você tem interesse na adesão da nossa Escola ao programa?” só constava a opção “sim”. A pergunta vinha acompanhada de uma tendenciosa afirmação: “Lembrando que o programa tem como objetivo a contínua melhoria do desempenho dos alunos, professores e gestão escolar”.

As denúncias em torno da consulta às escolas em Franca são preocupantes. É legítimo que pais, alunos, professores e funcionários das escolas possam decidir democraticamente os rumos que querem tomar na gestão escolar. O problema é quando essa decisão é enviesada, as opiniões contrárias são retaliadas e tenta-se impor um determinado ponto de vista.

As escolas cívico-militares viraram a última moda na onda de militarização geral do país que estamos vivendo nos últimos anos. Sob o comando de um presidente saudosista da ditadura, entusiasta da tortura e adepto ao autoritarismo, o número de militares no governo federal atingiu o maior número desde o regime militar. Depois do governo cortar 5 bilhões das universidades federais em 2019 e atravancar o quanto pode a aprovação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), agora investe pesado na propaganda das escolas militarizadas.

As escolas e a educação em geral são os principais alvos do governo. Não à toa, Bolsonaro tem escolhido a dedo fanáticos de teorias da conspiração para ocupar o cargo de ministro da Educação. O primeiro, Ricardo Vélez, indicado pelo ignóbil Olavo de Carvalho, teve a curta gestão marcada pela tentativa de comprar livros didáticos sem referências bibliográficas, pela criação de uma comissão para censurar as questões do Enem e pela afirmação de que as universidades deveriam ficar restritas às elites. Parecia que não podia piorar, mas seu sucessor Abraham Weintraub se superou.

Extremista de aspirações fascistas e monarquistas, o debiloide protagonizou erros de português em documentos oficiais, declarações racistas contra povos indígenas e contra a China, insultos a ministros do Supremo Tribunal Federal e até ao presidente da França, ameaçou cortar verbas de universidades federais que estivessem “fazendo balbúrdia”, incentivou alunos a filmarem e constrangerem professores em sala de aula e foi responsável pela direção do Enem com maior quantidade de erros na história. Para não ser preso em uma investigação da Polícia Federal, sua exoneração do cargo de ministro foi assinada quando já estava nos Estados Unidos, onde assumiu um confortável cargo na diretoria do Banco Mundial.

Embora menos conhecido, o atual ministro Milton Ribeiro não é menos controverso. Ele já afirmou que as universidades incentivam “sexo sem limites”, criticou métodos contraceptivos como a pílula do dia seguinte, defendeu punições físicas em crianças e disse que alunos com deficiência atrapalham o desenvolvimento das suas turmas, além de ter sido condenado por declarações homofóbicas.

Para as pessoas afetadas pela propaganda ideológica segundo a qual as escolas e universidades públicas são antros de depravação e doutrinação ideológica, as escolas cívico-militares parecem um oásis de ordem e respeito. Quem tem essa visão deveria, em primeiro lugar, visitar uma escola estadual e apontar onde estão esses bichos-papões ou passar um dia inteiro no papel de um professor da rede pública para tentar comprovar o que diz.

Sequer a militarização das escolas resolve, em si, o problema da educação pública. Primeiramente porque uma coisa não combina com a outra. Escola é um lugar para formar sujeitos críticos e criativos, para crianças começarem a desenvolver sua socialização e construírem autonomia intelectual. Quartéis são espaços disciplinados para preparar exercícios militares. Paulo Freire, considerado um dos maiores teóricos da educação do mundo e convertido em espantalho pelo governo Bolsonaro, defendia um modelo de ensino que incentivasse o aprendizado crítico, apoiado nas experiências pessoais dos educandos, em contraposição a uma educação “bancária”, no qual os alunos são vistos como depósitos vazios a serem preenchidos de conhecimento pelos professores.

A rígida disciplina militar não é compatível com o ambiente das escolas, que precisa ser mais aberto para que estudantes nos anos iniciais da sua formação possam começar a socializar com seus colegas, fazer amigos, brincar e desenvolver suas aptidões. Escola não é um espaço de obediência cega, mas de diálogo, crítica e criatividade – habilidades essenciais para a convivência em sociedade.

Não há nenhum problema na criação desse tipo de escola para quem quer seguir carreira militar, mas a generalização desse modelo é um risco para o ensino no país. Nossas escolas não devem servir para formar soldados, mas cidadãos intelectualmente independentes, com senso crítico e com os conhecimentos básicos para a vida em sociedade. Por isso, precisam ser espaços de livre pensamento, expressão e socialização, sempre dentro dos marcos do respeito entre alunos, professores, pais e funcionários.

O problema da educação pública não é a suposta liberalização que sequer existe, mas a falta de investimento. Escolas precisam de professores e funcionários valorizados e com condições de trabalho dignas, materiais e infraestrutura de qualidade, inclusive para garantir a segurança, e espaços democráticos de participação entre todos os entes que compõem a comunidade escolar. É mais temerário ainda que essa discussão tão delicada esteja sendo feita nos marcos de coerção e cerceamento nas escolas de Franca.

Guilherme Cortez é advogado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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