SONIA MACHIAVELLI

Alô, alô, marciano!

Por Sonia Machiavelli | especial para GCN
| Tempo de leitura: 3 min

Em 1980, nos estertores da ditadura militar que nos asfixiou por vinte e um anos, Rita Lee, que fora presa por subversão, compôs com o marido Roberto de Carvalho a música cujo título foi sucesso retumbante na voz de Elis Regina, única artista que visitara Rita no cárcere. Até hoje a música é lembrada pela geração que acompanhou seu lançamento.

“Alô, alô, marciano!/ Aqui quem fala é da Terra/ Pra variar, estamos em guerra/ Você não imagina a loucura/ O ser humano está na maior fissura.” Eram os versos iniciais da canção onde subjazia fina ironia sobre os tempos autoritários vividos desde 1964. A guerra à qual aludiam compositores e cantora era interna.

Lá fora, depois de encerrada a guerra do Vietnam, em 1975, outras guerras mostraram seu potencial hediondo. Viriam a da Sérvia, a do Irã/Iraque, a do Afeganistão, a da Chechênia, a da Crimeia, a da Síria- que na verdade não terminou. Cerca de trinta regiões do mundo têm no momento conflitos armados. Mas nenhum deles se aproxima da virulência da guerra que Putin desencadeou ao invadir a Ucrânia, há poucos dias, depois de mentir descarada e publicamente sobre suas intenções.

Ensandecido e atrelado ao poder, que manipula há mais de vinte anos, é provável que o líder comunista não tenha compreendido perfeitamente que o mundo mudou. O milênio inaugurado há pouco mais de duas décadas é o da Internet, dos satélites, da instantaneidade que nos conecta no mesmo segundo ao que ocorre em qualquer canto do mundo.

Em 24 horas ficamos sabendo mais sobre os ataques à Ucrânia que em uma semana soubemos sobre a Guerra do Iraque. Assim, assistindo “ao vivo” ao teatro horrendo da guerra, a opinião pública e os líderes de países civilizados se posicionaram contra Putin. Os que respeitam as regras estabelecidas pelo sistema internacional depois de 1945, e principalmente aquela que determina que nenhuma nação pode avançar sobre outra apenas por desejo de expandir seus domínios, estão ao lado da Ucrânia. Hipotecar solidariedade a agressores é coisa de gente que bárbara.

Olhamos a tela do televisor ou as telinhas de nossos celulares com horror, porque estamos vendo em tempo real a manifestação da violência em estado mais bruto e do sofrimento em grau máximo. As imagens são impressionantes. Entre escombros ocasionados por mísseis surgem pessoas perplexas. Nas estradas, mães levam filhos pequenos pelas mãos, sem saber onde irão se esconder dos ataques aéreos.

Nos bunkers jovens se amontoam em silêncio como se não acreditassem no que está ocorrendo. Gestantes deram à luz em meio a esse caos. Nas estações de trem, bebês de poucos meses sofrem com o frio a menos de cinco graus e choram. Dentro de um carro um menino de aproximados oito anos diz que o pai ficou em Kiev para lutar e ele, mais a mãe e seus irmãos vão procurar lugar seguro. Sentada ao seu lado a mulher chora, porque não sabe se esse lugar existe ou se voltará a ver o marido. Dizem que a primeira vítima da guerra é a verdade. Eu acho que são as crianças.

Não sei bem o que vai suceder. Enquanto escrevo, ouço o comentarista de um noticiário registrar que as tropas russas, depois de tomarem duas usinas nucleares, seguem para as portas de Kiev. Vou tentar dormir. Mas sei que não conseguirei, diante da sensação horrível de que se avançamos extraordinariamente no campo do conhecimento, estamos regredindo em termos de inteligência emocional. Não aprendemos a dialogar, a aceitar a autonomia do outro, a respeitar a independência alheia arduamente conquistada. Nós, os humanos, precários seres arrogantes, uma contradição em termos.

A lógica da guerra elide a ética. E nesse momento, a escuridão prevalece. Melhor chamar um marciano.

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