“Os verdadeiros caracteres da ignorância são
a vaidade, o orgulho e a arrogância”
Samuel Butler, escritor britânico
É consenso que vivemos hoje num país dividido, extremamente polarizado. Cada vez mais, há menos bom senso, princípios elementares de decência. Também parece inexistir a capacidade de admitir que, aqui ou ali, errou-se. Engana-se, entretanto, quem pensa que tais condições estejam restritas apenas à política ou à disputa eleitoral. É, sobretudo, um processo que vem de longe e tem bases estruturais, espalha-se de Norte a Sul e que, nem de longe, dá mostras de arrefecimento.
A baliza do certo e do errado, do justo e do injusto, parece ter sido jogada no lixo – se o problema é do “nosso” time, vale tudo, e buscam-se as explicações mais estapafúrdias para tentar justificar o que, nem precisa ir longe, é absolutamente injustificável. Se a falha acomete do “outro” lado, tem-se o inverso, e não importa quantas explicações sejam dadas, pouco interessa que a realidade seja distinta, o julgamento tem veredito condenatório antes mesmo de começar.
Dois episódios acontecidos em Franca nesta semana traduzem de forma cristalina o que se multiplica por todo o país – e, repita-se, não falo aqui de disputa eleitoral.
No primeiro, a cidade foi surpreendida – e nós, do GCN, mais ainda – com um vídeo publicado pelo prefeito Alexandre Ferreira, na noite de quarta-feira, 16, em suas redes sociais. Na postagem, o prefeito acusa o presidente do sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Franca, Fernando Nascimento, de mentir sobre o andamento das negociações salariais da categoria.
O portal GCN havia publicado uma matéria, de autoria do jovem e compromissado repórter Pedro Baccelli, na manhã de segunda-feira, 14, trazendo detalhes da negociação. Quanto os servidores queriam de aumento, qual o valor que pleiteavam para benefícios como vale-alimentação, o que mais desejam e em que pé se encontravam as discussões. Quem havia passado tudo ao repórter fora o próprio presidente do sindicato, numa entrevista por telefone iniciada às 11h29 da manhã de segunda-feira, e complementada com várias conversas por WhatsApp ao longo daquela tarde. Dedicado e atento, o repórter checou cada detalhe, verificou cada minúcia, e tudo foi confirmado – e esclarecido - pelo presidente do sindicato.
Surpreso com a notícia, Alexandre notificou formalmente o sindicalista para que ele apresentasse a tal pauta, porque diferente do que ele havia dito ao GCN, o documento não havia sido protocolado na prefeitura e, portanto, não havia como a comissão de negociação do governo se debruçar na análise dos dados para verificar o que era possível – e, mais relevante ainda, o que não seria. Bastava Fernando Nascimento ter dito que se atrasou, que quando concedeu a entrevista imaginou que conseguiria entregar o documento no mesmo dia mas que fora surpreendido por um imprevisto qualquer. A pauta estava pronta, tinham se passado apenas dois dias e não haveria maiores prejuízos a ninguém.
Não foi o que fez Fernando Nascimento. Ao se justificar pelo atraso na entrega do documento para a secretária de Recursos Humanos, Marina Mattos, escolheu o pior caminho possível: mentir. “Não houve nenhuma divulgação nem por mim porque agora que terminamos a formatação da pauta. Não sei por qual meio FAKE que chegou até você”, disse o presidente do sindicato na mensagem encaminhada à prefeitura, como se o repórter do GCN tivesse inventado a entrevista, os índices e a pauta de reivindicação.
Confrontado pelo prefeito e desmentido pelo GCN, que logo publicou a íntegra das conversas e do áudio que deixam óbvio que não apenas a entrevista havia sido feita, como também houvera várias conversas subsequentes e tudo que foi registrado pelo portal correspondia à verdade, Fernando Nascimento parece ter decidido comprovar, ainda que sem ter muita consciência, de como é precisa a “lei” preconizada por Murphy. “Nada é tão ruim que não possa piorar”.
Por volta de 22h da mesma quarta-feira, postou em suas redes sociais um vídeo onde aparece com peculiar desenvoltura e dicção que ora ou outra dificultava a compreensão. Mas, em síntese, Fernando Nascimento disse que o prefeito havia pegado numa “coisinha pequeninha” para tumultuar a negociação e atacá-lo. Disse ainda que havia “se esquecido” da entrevista. Chega a ser preocupante: uma coisa é não se lembrar com precisão de alguma coisa que aconteceu meses atrás. Mas, apenas 48 horas depois de conceder uma entrevista e manter múltiplas conversas com um repórter não se recordar de nada é caso para ajuda médica. Urgente.
O segundo episódio que ilustra bem o momento atual envolve a diretoria da Acif (Associação Comercial e Industrial de Franca) e a decoração de fim de ano, batizada de “Natal Iluminado” e bancada quase exclusivamente com dinheiro público. Como se sabe, a verba de quase R$ 1 milhão fora liberada pela Câmara Municipal, a pedido do prefeito Alexandre Ferreira, numa votação relâmpago, sem maiores discussões.
O que no papel era um ambicioso projeto para iluminar todas as regiões da cidade converteu-se numa frustração sem fim. Além da decoração ter aproveitado itens de anos anteriores, especialmente a grande árvore instalada no Centro, tudo diferente do que estava no plano apresentado e pelo qual pagamos todos nós, o resto parecia mais um arremedo de quermesse de cidade pequena, especialmente nos bairros. Para piorar, o GCN, vereadores e outros veículos de imprensa denunciaram super-faturamento, itens incompatíveis com o plano, materiais de qualidade inferior e uma série de gastos duvidosos, para dizer o mínimo.
O prefeito até tentou justificar num primeiro instante, mas diante de tantos elementos, e com a pressão da população sobre os vereadores, Alexandre Ferreira determinou que a área de compliance da prefeitura, nome bonito para a velha auditoria, analisasse o contrato. Demorou uma eternidade mas, às vésperas do Carnaval, finamente saiu a conclusão, divulgada no final da tarde da última sexta-feira, 18. Segundo a prefeitura, a Acif tem que devolver R$ 158 mil dos R$ 960 mil que recebeu.
Apesar da devolução de parte do dinheiro, o gosto amargo e a sensação de termos sido feitos de palhaços é inevitável. Afinal, quem errou? A Acif, que conta com economistas, departamentos estruturados, diretores remunerados, não consegue mais fazer um orçamento correto do serviço que pretende prestar com dinheiro público nem acompanha sua execução? O gabinete do prefeito não se debruçou sobre o plano antes de mandar o projeto à Câmara nem se preocupou em fiscalizar depois? Os vereadores, que aprovaram tudo em regime de urgência, não leram nada antes de votar? O Observatório Social, conincidência ou não, fundado dentro da Acif e com diretoria que tem como ocupantes os mesmos nomes e sobrenomes que ocupam ou ocuparam posições de destaque na entidade ao longo dos anos, não se interessou por averiguar, não exigiu providências diante de R$ 1 milhão sob suspeita nem representou no Ministério Público, como fazia com frequência no governo anterior? Será que o malfeito só é malfeito se for praticado por um adversário? Se o erro é da entidade parceira, melhor colocar panos quentes, ainda que se trate de uma quantia milionária? Parece que sim, para todas as indagações.
Mas o pior, nos dois casos, é a desfaçatez. Até agora, nem o sindicalista nem a entidade, cuja atual diretoria macula a linda história até aqui escrita por sucessivas gerações, se desculparam por seus respectivos “erros”, gravíssimos.
O gesto do sindicalista Fernando Nascimento poderia ter posto um fim precoce à carreira de um jovem jornalista muito promissor. Se o repórter Pedro Baccelli não tivesse gravado tudo, passaria como mentiroso e inventor de histórias, o que de pior pode acontecer a um jornalista. O que Fernando Nascimento chama de “coisinha pequenininha” não é. Muito pelo contrário, é grave, é sério e tem impactos. Se ele não se lembra do que fez dois dias antes, como os servidores vão acreditar no seu relato das tensas reuniões que marcam sempre as discussões salariais? Se ele disser que o Alexandre cometeu um excesso, como saberemos que é verdade? Não poderia ser outra confusão mental do sindicalista? Pelo sim, pelo não, melhor gravar todas as conversas. E, se possível, realizá-las com múltiplas testemunhas até que o presidente do sindicato dos Servidores se recupere da grave enfermidade que parece o acometer.
E a Acif, não virá a público se desculpar? Não vai dizer quem é o culpado? Vai se esquivar de apontar quem errou na elaboração do plano – ou na aplicação dos recursos? O presidente, Tarcísio Botto, cujo pai, Luciano, tem uma história tão bonita à frente da entidade no passado, vai continuar escondido, sem dizer palavra sobre o assunto além de duas notas que nada explicam e, juntas, não somam nem 5 parágrafos?
Nos tempos em que vivemos, não há razões pera otimismo. A julgar pelo comportamento dos envolvidos, nenhum pedido de desculpas será apresentado, nenhuma explicação será dada além das esfarrapadas justificativas já tornadas públicas. É ruim, muito ruim que tudo termine desta forma. Franca, assim como o Brasil, merecia mais. Muito mais.
Corrêa Neves Jr é jornalista e editor-chefe do GCN.
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