GAZETILHA

Uma ligação intrigante

Por Corrêa Neves Jr. | da Redação
| Tempo de leitura: 7 min

“Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar”
Dias Gomes, dramaturgo brasileiro

Recebi nesta última semana uma ligação misteriosa. Começou confusa. A recepcionista que atendeu a chamada não entendia o que o interlocutor dizia. Parecia inglês, não parecia inglês, talvez o sujeito falasse alemão... Certo mesmo é que não era português. Sem saber direito o que fazer, transferiu a chamada para o meu ramal. Atendi.

Imediatamente, tive a impressão de que já tinha ouvido aquela voz. Levemente rouca, com ritmo musical, pertencia a um homem já idoso. Ele falava inglês, mas não era nativo. Tinha forte sotaque, e por vezes passava longos segundos procurando a palavra certa para traduzir o que pretendia dizer. Me apresentei e perguntei como poderia ajudar.

O homem disse se chamar Nicolau. Falava de Rovaniemi. Como nunca tinha ouvido falar do lugar, perguntei onde ficava. “Na Finlândia, bem ao norte, pertinho do Círculo Polar Ártico”, disse, rindo de um jeito engraçado. Brinquei que era muito longe. “Sim. E muito frio”, completou o simpático velhinho.

Finalmente ele entrou no assunto que o levara a me ligar. Ele tinha lido uma matéria sobre a decoração de Natal de Franca, compartilhada sabe-se lá por quem, e depois tinha navegado por várias reportagens sobre o assunto que o GCN publicara. Mas como não falava português e dependia da tradução do Google, o resultado da versão em finlandês lhe parecia meio sem sentido. Especialmente, alguns dos itens e valores relatados.

Primeiro, Nicolau quis saber se tinha entendido certo que o desfile do Papai Noel, umas poucas horas num único sábado, tinha custado mesmo quase US$ 10 mil. “Sim, é o que dizem. Gastaram R$ 50 mil”, expliquei. Ele parecia surpreso. “Com esse dinheiro, conseguiria sair daqui e voar para Franca com a minha mulher, pela Air France. Como tem conexão em Paris, poderia ainda passear com minha mulher por lá. Já estive muitas vezes em Paris, sempre a trabalho, e à noite. Nunca, para me divertir. Seria perfeito. Tudo isso custaria R$ 14 mil, para mim e para minha mulher”, disse. Assenti. Ele perguntou se Ribeirão Preto era perto. Confirmei. “Então... Como o desembarque é em Ribeirão, fiz as contas e vi que daria para alugar um carro no próprio aeroporto. Por dez meses, custaria R$ 35 mil. Carro bom, novinho, um tal de Renault Sendero”. Confirmei de novo. “Ou seja, com o dinheiro que gastaram com uma única parada do Papai Noel consigo sair da Finlândia com a minha mulher, passando por Paris, e ainda alugar um carro por dez meses. Daria para chegar em Franca e ter um carro a minha disposição até o final de 2022”, disse Nicolau. Sim, era isso mesmo.

Depois, ele quis entender se não tínhamos errado na matéria nos valores relativos à casinha do Papai Noel. Não seriam R$ 11 mil, ao invés dos R$ 110 mil que listamos? “Não, Nicolau. Foi isso mesmo”, expliquei. “Tem certeza que gastaram US$ 20 mil nisso?”, insistiu. “É o que dizem”, respondi.

Ele veio de novo com as suas contas. Disse que morava numa cabana rústica, simples mas muito confortável, nas montanhas cobertas de neve, e que não era de hoje que a mulher dele pedia para passar pelo menos parte do ano num lugar mais quente e charmoso. Ela sonhava com uma cobertura em Rovaniemi, a “capital” da Lapônia, com vista privilegiada para a cidade, e ali passar pelo menos seis meses por ano. Mas sempre achara os custos proibitivos. “Ficaria uns R$ 50 mil o semestre”, afirmou. “Mas em Franca vocês gastaram R$ 110 mil num único mês”, completou. Aí, ele quis saber quantos cômodos tinha a casinha do Papai Noel de Franca. “Um”, respondi. “Como assim?”, insistiu Nicolau. “É só um cômodo num prédio. Não tem quartos, não tem sala, não tem sacada, não tem fachada, não tem nada”, expliquei.

Nicolau parecia incrédulo. Perguntou quanto custaria para alugar uma casa por aqui. E já que era para sonhar, queria uma casa grande, com piscina, área de lazer, muitos quartos. Expliquei a ele que não sou do ramo, mas pelo que ouço, com 5 a 6 mil reais se aluga uma mansão. “Quer dizer que com o dinheiro de um mês da casinha do Noel daria pagar um ano de uma mansão?”, perguntou. “Sim, e com o que sobrasse ainda daria para quitar o IPTU, o condomínio, água e luz, umas taxas que somos obrigados a pagar aqui no Brasil”, expliquei. “Impressionante”, disse Nicolau.

Meu interlocutor pediu que explicasse a ele o que era a tal casinha de Papai Noel itinerante, que custou mais R$ 100 mil. Disse que, basicamente, era uma van que percorria as ruas da cidade com decoração alusiva ao Natal. “Mas tô com o site de aluguel de carros aberto aqui na minha tela”, disse Nicolau. “E o aluguel de uma van em Franca, por um mês, custa R$ 12,5 mil. Por que pagaram oito vezes mais?”. Respondi da forma mais sincera possível. “Não sei”.

Como a conversa se arrastava há mais de meia hora e tinha muita coisa a fazer, perguntei se tinha mais alguma coisa que poderia fazer para ajudar. “Sim”, respondeu Nicolau. “Tenho uma dúvida e um pedido”. Assenti de novo.

“Vi que foram gastos R$ 140 mil em cinco árvores de Natal. Desculpe, mas não tá errado? Não seriam 50 árvores? Ou quem sabe, 200, como fazemos aqui em Rovaniemi?”, insistiu. Respondi que era isso mesmo: R$ 140 mil gastos, ao menos em tese, em cinco árvores. “E nem são árvores. São basicamente fios com luzinhas puxados de postes de cimento”, expliquei. “Ah... Mas então, onde o dinheiro foi gasto?”, perguntou outra vez. Respondi a mesma coisa. “Não sei”.

Nicolau agradeceu pelo meu tempo. Perguntei o que ele desejava me pedir. “Queria o contato dos empresários que bancaram tudo isso, porque vi que investiram mais de R$ 1 milhão, o que dá US$ 200 mil. Eles são muito generosos. Quero pedir emprego para eles”, continuou. “Como assim?”, perguntei.

Nicolau foi direto ao ponto. “Você vai duvidar, mas sou o que vocês conhecem como Papai Noel. O próprio. Estou cansado e quero me aposentar. Conheço o mundo todo e não encontrei outra cidade com comerciantes tão generosos como esses diretores da associação comercial de Franca, que fizeram tudo isso, capazes de investir tanto do próprio bolso para alegrar a cidade”, comemorou. “Mas acho que não sabem pesquisar, ou são tão altruístas que nem se preocupam com o impacto nos próprios bolsos. Com menos dinheiro, poderiam ter um Natal muito mais bonito. E eu sei fazer”, reforçou, quase implorando por uma oportunidade.

Fiquei surpreso, incrédulo, mas pelo sim, pelo não, disse que encaminharia imediatamente o telefone da Acif para ele. Achei prudente perguntar se ele também não queria o do prefeito e dos vereadores. “Por quê?”, sapecou Nicolau. “Porque o dinheiro não é da associação comercial. Praticamente todo o gasto foi bancado com dinheiro público. Eles executaram, cobrando estes valores que também parecem desproporcionais ao senhor. Mas quem pagou foram os francanos, os moradores”, expliquei. Nicolau agradeceu, mas parecia desanimado. Foi minha vez de perguntar por quê?

“Achei que era dinheiro dos comerciantes, meu filho. Aqui em Rovaniemi, a decoração é linda. Usamos 200 árvores e recebemos turistas do mundo inteiro, mas é tudo custeado pelos comerciantes e por um grupo de voluntários. Se a gente dissesse que ia usar dinheiro público para isso, é capaz de processarem o próprio Papai Noel. Ou seja, eu mesmo. Com dinheiro do povo, não dá”, lamentou. “Não vai ser desta vez que vou me mudar para o Brasil. Mamãe Noel vai ficar frustrada”.

Ainda não acredito que tenha recebido uma ligação do Papai Noel, mas é certo que acredito menos ainda que os valores aplicados na decoração de Franca sejam aqueles descritos no famigerado “Plano de Trabalho”. Não consigo ver onde se gastou R$ 100 mil na decoração de um cômodo, R$ 50 mil em um dia de desfile que nem cumpriu o itinerário prometido ou R$ 140 mil em cinco árvores feitas de fios de led esticados. Isso, para nem entrar no mérito dos R$ 265 mil em mão de obra.

Mas de uma coisa, não tenho dúvidas. Muito mais improvável do que eu ter conversado com o próprio Papai Noel é a decoração de Natal de Franca ter custado o que alegam. Nem aqui, nem na Lapônia. Ho-ho-ho!

Corrêa Neves Jr é jornalista e editor do GCN.

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