“Há pouca razão nas armas”
Virgílio, poeta romano
A madrugada da última quinta-feira, 18 de novembro, serviu de palco para um dos mais bárbaros e estúpidos crimes praticados em Franca nos últimos anos. Douglas Teixeira, um policial militar de 29 anos que participava das forças especiais da corporação, rumou até o jardim Piratininga, onde morava sua ex-mulher, Thábata Gonzales, uma analista financeira de 34 anos, e a matou, muito provavelmente, com um único disparo na cabeça.
No momento do assassinato duas crianças, filhas de Thábata, dormiam na casa. Douglas colocou o corpo da analista financeira no carro dela e seguiu para uma chácara onde vivem os pais dele, na rodovia que liga Franca a Claraval, deixando as duas crianças entregues à própria sorte.
Na tal chácara, quando já surgiam no horizonte os primeiros raios de sol, contou o que tinha feito, pegou a caminhonete do pai, largou o carro da ex-mulher com seu cadáver dentro e fugiu. O “machão” que adorava postar fotos sem camisa exibindo armas e músculos em redes sociais não teve coragem de enfrentar as consequências de seus atos. Como um rato, saiu correndo e escondeu-se num buraco qualquer, numa tentativa tosca, registre-se, de escapar do flagrante e evitar as grades da prisão.
Douglas acabou se entregando na tarde de sexta-feira, 36 horas depois do assassinato que cometeu. Estava acompanhado de um advogado. Apelou à Constituição para permanecer em silêncio e ignorou, solenemente, quaisquer esclarecimentos ao delegado.
Saiu de lá, quando já anoitecia, direto para o presídio Romão Gomes, unidade destinada a policiais que cometem crimes, na zona norte da capital, após a decretação de sua prisão temporária pela Justiça. Não viajou na caçamba onde costumam ser transportadas pessoas que fazem aquilo de que é acusado de ter feito. Estava sentado no banco de trás, escoltado por PMs que até horas antes eram seus companheiros de trabalho. Alguns, certamente, seus amigos.
Muitas dúvidas ainda cercam o caso, e o silêncio do “machão” covarde em nada ajuda a esclarecer. Não se sabe, por exemplo, se a ação foi premeditada, pensada, ou uma explosão de ira num momento de discussão. Ninguém tem ideia de por que ele foi até a casa da ex por volta de 5h da madrugada – pode ser que desde o início ele planejasse matá-la; pode ser que pensasse em estuprá-la, como ela já havia dito que ele fizera tempos antes, o que motivou o registro de um boletim de ocorrência; pode ser que se achasse no direito de infernizar sua vida.
Ignora-se, por enquanto, se ao chegar na casa dos pais e narrar o que tinha feito, foi aconselhado a se entregar imediatamente ou se encontrou respaldo para fugir e tentar evitar a prisão. Tampouco se sabe quem ofereceu abrigo ao assassino, armado e perigoso, que podia ter tirado a vida de mais alguém, durante um dia e meio.
Sobretudo, e mais importante ainda neste caso em particular, segue um mistério absoluto as circunstâncias em que foi escrita e enviada uma mensagem, supostamente por Thábata, para sua mãe. No texto, encaminhado às 5h23 da madrugada de quinta-feira, 18, Thábata ensaia uma despedida e pede que a mãe cuide de seus fiilhos, além de declarar amor a alguns familiares. “Mãe, cuide bem das crianças, proteja com unhas e dentes, como a mãe maravilhosa q vc sempre foi. Gratidão por nossa família”, diz. “Mãe, busca as crianças assim que você acordar. Eles estão sozinhos e eu não estarei mais aqui”, continua. O texto completo e a reprodução da mensagem podem ser conferidos neste link.
Quem lê a mensagem descolada dos fatos imagina se tratar da despedida de uma suicida, o que, sabe-se, não foi o caso. Assim, restam duas hipóteses, ambas medonhas, para qual a origem da estranhíssima mensagem. Na primeira, Douglas Teixeira obrigou-a a escrevesse uma mensagem aos pais antes de matá-la. Na segunda, o próprio Douglas escreveu o texto e enviou depois de ter matado sua antiga companheira. Nas duas alternativas, parece claro que o objetivo do “machão” era atribuir a autoria do crime à própria vítima, numa tentativa, patética, de evitar ser responsabilizado. Em qualquer uma das opções, é pavoroso constatar o tipo de gente que anda por aí autorizada a portar armas. Caráter passou longe. Decência, inexiste. Misericórdia, Douglas não sabe o que é. E amor é sentimento que, de fato, parece nunca ter experimentado.
Espera-se que, ao final do inquérito policial, o delegado Márcio Murari, chefe da DIG (Delegacia de Investigações Gerais), tenha conseguido responder estas dúvidas e muitas outras. Um inquérito sólIdo é meio caminho andado para que o Ministério Público possa oferecer uma denúncia robusta que permita, num julgamento justo, chegar ao único veredicto possível: culpado.
Ainda assim, que ninguém espere que Douglas Teixeira apodreça na cadeia. Isso simplesmente não vai acontecer por uma série de circunstâncias que fazem do Brasil um dos países com as maiores distorções no sistema penal do mundo. Assassinos como Douglas Teixera, ainda que tenham tirado a vida de suas vítimas com extrema crueldade e covardia, mesmo que sejam tipificados com todos os agravantes possíveis, raramente são condenados a mais de 20 anos de cadeia.
Considerados todas as atenuantes e progressões aplicáveis, é virtualmente impossível que quem mate uma pessoa chegue a ficar dez anos preso. O mais provável é que permaneça cinco ou seis anos atrás das grades, pouco mais, pouco menos. Será assim com Douglas Teixeira.
Não será nenhum espanto se quando alcançar a idade de Thábata Gonzales, seu algoz, Douglas Teixeira, já esteja livre. Poderá seguir com sua vida por décadas, abraçar seus pais, encontrar-se com amigos, ter filhos e assisti-los crescer, confortando-os diante dos desafios que sempre surgem na trajetória de qualquer um. Terá a chance de amar e ser amado, de se emocionar, de sorrir e chorar. Terá tempo até de se arrepender.
Nenhuma dessas opções poderá ser exercida por Thábata graças à atrocidade cometida por Douglas. O tempo que passará na cadeia é nada diante do mal que causou. Ficar encarcerado até o último dos seus dias seria a opção válida, mas no nosso Brasil, inexiste prisão perpétua - mesmo em casos onde o condenado tenha punido a vítima com a pena de morte sem julgamento ou direito a defesa, como Douglas fez com Thábata.
É preciso extrair de tragédias como o feminicídio de Thábata Gonzales algumas lições. Ela não foi a primeira e não será a última. Fico me perguntando quantos outros casos como este teremos que assistir até que se faça uma profunda revisão no código penal, passando também por uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) para permitir que em casos como este seja aplicável a prisão perpétua. Sem direito a progressões, a visitas íntimas, a saidinhas, ou a quaisquer benefícios que signifiquem liberdade. Gente como Douglas Teixeira merece - e precisaria - apodrecer na cadeia. Até o seu último suspiro.
Também me angustia muito imaginar quantos outros cadáveres terão que ser empilhados até que essa sociedade que cultua armas e violência, que exalta o machismo e a posse, como se mulheres fossem propriedades de homens, entenda o absurdo desta premissa. Ninguém é de ninguém. As pessoas amam, namoram e se relacionam num pacto que precisa ser mútuo. Quando um não mais quer, cabe ao outro respeitar. Vale lutar pelo amor, vale tentar resgatar, vale procurar conquistar - só não vale impor, exigir, condicionar, muito menos obrigar.
As famílias e as escolas precisam urgentemente se envolver nesta discussão, assim como as igrejas, numa profunda reflexão sobre as implicações práticas do "até que a morte nos separe", que precisa ser atualizada para os tempos que vivemos. Nenhum casamento, nenhuma relação deve ser mantida se um de seus participantes assim não deseja mais. É simples e óbvio como tem que ser. "Thabátas" não podem seguir morrendo porque outros "Douglas" não aceitam o término do relacionamento. Crianças não podem ficar órfãs porque o namorado da mãe assim decidiu.
Douglas Teixeira aprontou uma desgraceira, destruiu a vida de muita gente e comprometeu o futuro de duas crianças. É indigno, injusto e imoral que a ele seja reservado, como será, a chance de recomeçar. Que fique registrado: Douglas Teixeira, 29 anos, não é apenas uma pessoa que "errou", mas um assassino brutal e cruel. Erros podem ser reparados; o dele, não. Por isso, chamá-lo do que ele é significa reservar o mínimo respeito pela memória de Thabata Gonzales. Hoje e para sempre, Douglas Teixeira deve ser lembrado e conhecido como o assassino que se tornou.
Corrêa Neves Jr é jornalista e editor do GCN.
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