OPNIÃO

O juiz e seu labirinto

Em um evento público para 400 pessoas em Brasília, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro assinou sua ficha de filiação ao Podemos na última quarta-feira (10), sendo instantaneamente lançado pré-candidato a presidente da República pelo partido. Leia mais no artigo de Guilherme Cortez.

Por Guilherme Cortez | 13/11/2021 | Tempo de leitura: 6 min
especial para o GCN

Divulgação

Em um evento público para 400 pessoas em Brasília, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro assinou sua ficha de filiação ao Podemos na última quarta-feira (10), sendo instantaneamente lançado pré-candidato a presidente da República pelo partido. Alguns anos atrás, essa notícia teria um impacto colossal no tabuleiro eleitoral brasileiro. Como juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Moro ficou conhecido nacional e internacionalmente por julgar os processos da Operação Lava-Jato em primeira instância.

Seu papel à frente desses julgamentos lhe rendeu o posto de celebridade nacional. Alçado à posição de super-herói da luta contra a corrupção, protagonizou as capas das principais revistas brasileiras e foi escolhido por inúmeros veículos ora como “personalidade do ano”, ora uma das pessoas mais influentes do país e do mundo. Sua popularidade astronômica o fez por muito tempo um nome potencialmente imbatível para qualquer disputa eleitoral. Não era difícil imaginar que Moro poderia ser presidente do Brasil, se assim quisesse.

Moro passou anos negando qualquer pretensão eleitoral ou envolvimento partidário, desenhando a si próprio como uma figura acima da corrupção das instituições políticas. Seus atos, contudo, caminhavam no sentido oposto. Como juiz, sua conduta foi inequivocamente política – quando não diretamente eleitoral e partidária. De seu gabinete na capital paranaense, expediu mandados de prisão, revelou delações premiadas, manteve intensa e imprópria relação com os acusadores daqueles que deveria julgar com imparcialidade e determinou parte considerável dos principais acontecimentos políticos dos últimos anos.

A interceptação de conversas privadas entre a então presidente Dilma Rousseff e seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva – a famosa “ligação do Bessias” – foi determinante para o desenrolar do processo de impeachment que culminaria na posse do vice Michel Temer. Mais tarde, deu o pontapé para o afastamento de Lula, então favorito nas pesquisas de intenção de voto, das eleições que elegeriam Jair Bolsonaro, com a condenação em primeira instância que viria a ser mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Não fosse o suficiente, deu mais uma mãozinha para seu futuro chefe ao liberar, às vésperas da eleição, trechos de uma delação do ex-ministro Antonio Palocci que prejudicou seu adversário Fernando Haddad e depois se provou forjada. Ato contínuo, foi nomeado ministro pelo homem que ajudou a eleger presidente.

Não poderia haver confissão maior do envolvimento e parcialidade política do ex-magistrado: imagine os livros de história do futuro narrando como o juiz que condenou o candidato favorito nas pesquisas eleitorais foi promovido a ministro por seu oponente – cuja vitória foi facilitada pela saída daquele primeiro do páreo. Tudo isso à luz do dia, ao vivo, a cores e sob clamores de combate à corrupção.

Mas Moro não podia controlar o monstro que ele próprio ajudou a colocar na cadeira da presidente da República. Não demorou para seus interesses colidirem com o projeto de Bolsonaro de tornar toda a estrutura do governo federal um aparato de defesa de seus interesses pessoais e de sua família. Uma desavença em relação à troca de comando da Polícia Federal, logo no início da pandemia, foi o estopim para a saída do ex-juiz-celebridade do governo.

Desempregado, se refugiou em uma consultoria norte-americana responsável pela administração judicial da construtora Odebrecht e assessoria de outras empresas que foram alvos de suas sentenças, recebendo um "modesto" salário de R$ 1,7 milhão por ano. Mais uma vez, em uma espécie de sincericídio jurídico, não se envergonhou de advogar – por um gordo salário – para as empresas que ajudou a falir, se beneficiando novamente dos resultados das suas próprias decisões.

Não bastasse isso, no caminho de Sérgio Moro ainda havia o bom jornalismo. Uma série de reportagens publicadas pelo jornal The Intercept Brasil, nomeada como “Vaza Jato”, revelou centenas de trocas de mensagens entre o então juiz federal e membros da força-tarefa da Operação Lava-Jato, comprovando que os “heróis da luta contra a corrupção” infringiram o processo penal brasileiro de cabo a rabo e planejaram a condenação de cada um de seus alvos. O próprio Moro, a quem caberia julgar com isonomia seus réus, respeitando suas garantias legais, comandava o time de procuradores responsável pelas acusações, orientando as estratégias processuais que viria a sentenciar.

Caiu por terra, assim, a pompa do herói nacional de ontem. De paladino da moral, Moro se revelou um julgador parcial e com um projeto de poder consciente, apesar de toda a retórica avessa a empreitadas eleitorais. Delatou a si próprio quando aceitou trabalhar para o presidente cuja vitória só foi possível por intermédio de suas sentenças.

Seu princípio trunfo – a prisão de Lula – viria a ser revertido pelo Supremo Tribunal Federal, que o considerou suspeito para conduzir os processos contra o ex-presidente e anulou suas condenações. Reabilitado, Lula figura hoje na liderança absoluta de todas as pesquisas de opinião para 2022, à frente do candidato que não pôde enfrentar em 2018 e do juiz que o colocou na cadeia.

O ato de filiação na semana passada, que outrora seria celebrado como um episódio definitivo da política nacional, não fez mais do que coroar um processo de envolvimento cada vez mais explícito do ex-juiz com a política. Foi acompanhado pelo procurador exonerado Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa da Lava-Jato, que também anunciou seu ingresso oficial na vida política.

Mas Moro cometeu um erro de cálculo político. Ao assumir e depois romper sua aliança com Bolsonaro, dividiu parte de sua expressiva base de apoio com a criatura para o qual pavimentou o caminho da Presidência. Uma ala mais ensandecida se manteve fiel ao capitão, alienada de qualquer evidência de corrupção ou descalabro do seu governo. Para essa parcela, o juiz de Curitiba passou de herói a traidor. Outro setor, assustado com o descontrole do presidente, procura uma saída “segura”, um bolsonarismo sem Bolsonaro. Nesse caldo, mais de uma dezena de aspirantes à terceira via, opositores tardios do governo, tentam se viabilizar.

O espaço para esse discurso, no entanto, é estreito em meio à uma crise social e humanitária que polariza o país, depois de três anos de governo Bolsonaro, 600 mil mortos por uma pandemia e milhões de brasileiros desempregados e passando fome. Da última vez que alguém se postulou ao cargo máximo da República com um discurso demagógico e se dizendo “de fora do sistema” embora estivesse enfiado nele até as orelhas, deu no que deu.

Sérgio Moro não exerce mais o mesmo fascínio de antigamente. Refém de si mesmo, preso no labirinto que ele próprio criou, terá ainda mais dificuldade do que seus adversários postulantes à terceira via para se diferenciar do presidente do qual não só compôs o governo como também foi fiador eleitoral. Sua melhor contribuição talvez seja tirar alguns votos do pior presidente da história do Brasil e ajudar a impedir a tragédia que representaria sua reeleição. Alguns podem dizer que é um triste fim para um personagem que já teve o país na mão. Outros, que é merecido.

Guilherme Cortez é advogado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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