GAZETILHA

Quando a música para

Não há antídotos contra nosso próprio destino. “Aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã”, ensinava Horácio em suas "Odes" antes mesmo de Cristo. É uma grande e inestimável lição. Temos, quando muito, o hoje, e é preciso vivê-lo o melhor possível.

Por Corrêa Neves Jr. | 08/11/2021 | Tempo de leitura: 6 min
Editor do GCN

“O dia que chegar, chegou. Pode ser hoje ou daqui a 50 anos. A única coisa certa é que ela vai chegar”
Ayrton Senna
, piloto brasileiro


O filme Margin Call - o Dia antes do Fim completou dez anos. Foi lançado em 2011, três anos após o evento que retrata: a quebra do mercado imobiliário americano, que levou à bancarrota bancos, corretoras, investidores e minou, por um bom tempo, a credibilidade dos financiamentos nos Estados Unidos.

É uma obra brilhante, por muitas razões. Mas o melhor mesmo são os diálogos, de onde é possível extrair lições que se aplicam a praticamente toda e qualquer situação.

Num dos meus trechos preferidos, é madrugada na sede da corretora e reuniões se sucedem em busca de uma solução para o problema que havia sido diagnosticado por um veterano analista de risco, Eric Dale (Stanley Tucci), com a ajuda de um pupilo, Peter Sullivan (Zachary Quinto). Vários diretores e conselheiros estão numa sala, à espera da reunião de emergência que será presidida pelo CEO da companhia, o implacável Peter Tuld (Jeremy Irons, numa interpretação curta, mas brilhante).

Não foram necessárias muitas considerações para que todos estivessem convencidos de que a tragédia era mesmo iminente, mas há quem ache que o CEO está excessivamente pessimista. Ele se dirige então a Sullivan, o jovem analista.

- Deixe-me lhe contar uma coisa, Sr. Sullivan. Quer saber por que estou nesta cadeira? Por que sou aquele que ganha mais? – pergunta Tuld.
- Sim – responde Sullivan.
- Estou aqui por uma razão, e por uma única razão. Estou aqui para adivinhar como será a música daqui a uma semana, um mês ou um ano. É isso – continua Tuld, para arrematar. - Estou aqui nesta noite e temo não conseguir ouvir nada. Só silêncio.

Me lembrei imediatamente deste diálogo na última sexta-feira, 5, tão logo soube da morte da cantora Marília Mendonça. Tinha entrado num compromisso às 17h com a informação, divulgada por sua assessoria, de que ela havia sobrevivido ao acidente. Quando saí, às 18h, a tragédia havia sido anunciada. Ninguém sobrevivera. Aos 26 anos, a vida de Marília Mendonça tinha sido abruptamente interrompida. Como no filme, ninguém percebeu que a música da vida de Marília estava terminando. Não havia como antecipar. Só o que se impunha era o silêncio.

Nunca fui fã de Marília Mendonça, até porque não sou um entusiasta do gênero, mas sempre admirei e respeitei sua trajetória. Compositora desde os 12 anos, reconhecida desde os 15, corajosa, Marília Mendonça nunca foi mais uma. Não se abalava com estereótipos, não se intimidava, não era apenas um talento musical. Marília Mendonça transcendia o universo artístico e sua personalidade e biografia, muito mais do que a música, sempre me instigaram.

Infelizmente, tudo acabou interrompido num acidente que tem muito de tosco, de besta. Se não houver alguma revelação bombástica que a perícia venha a fazer, a provável causa será mesmo, muito provavelmente, uma falha qualquer do piloto.

Ainda que não se tenham todos os detalhes, sabe-se já que o avião aproximou-se da pista a uma altitude três vezes menor do que o recomendado. Voava a apenas 90 metros de altura quando ainda estava a 5 km da área de pouso. Na pior das hipóteses, precisaria estar a pelo menos 300 metros de altura.

Foi voando muito mais baixo do que deveria que o King Air topou com as linhas de alta tensão, que serviram como um estilingue que atirou o avião violentamente ao solo. Terminava assim, no leito de uma bucólica cachoeira, depois de percorridos mais de 800 quilômetros desde a decolagem nos arredores de Goiânia, a existência de Marília Mendonça.

Vale lembrar que a cantora não voava com uma empresa clandestina, desconhecida, mequetrefe, nem usava um teco-teco qualquer. A aeronave era boa, segura, estava com documentação em dia. O piloto era um homem de meia idade, experiente, que tinha ao seu lado um co-piloto também sem nada que pudesse depor contra.

O dia estava lindo, o céu azul, sem nuvens carregadas no horizonte que pudessem ameaçar com severas turbulências, sem tráfego intenso, sem chuvas ou tempestades. Ela não estava atrasada para o show, ninguém estava passando mal a bordo, nenhuma contingência poderia sugerir um final de voo fora do padrão. Muito menos haveria como identificar quaisquer indícios que pudessem antecipar a tragédia.

Infelizmente, assim é a vida. A verdade, sempre difícil de ser encarada, é que temos muito pouco controle sobre nossa precária existência, se é que temos algum. Nascemos, vivemos com todas as limitações que as circunstâncias impõem, certos apenas de que vamos morrer. O mais, é um enorme mistério.

Se nos negócios ainda é possível antecipar cenários e tendências, projetar causas e consequências e, às vezes, construir alternativas, como mostra o filme Margin Call, no que se refere ao nosso tempo de vida e data de morte, as variáveis são bem mais complicadas.

Ninguém sabe quando a própria música vai parar. Para alguns é ainda na infância, sem que tenham chance nem mesmo de vencer os primeiros anos. Outros protagonizam longas jornadas. Tem gente que cai da cama e morre. Há pessoas que são atropeladas por ônibus e sobrevivem. Alguns vencem o câncer, outros são derrotados por uma infecção de garganta. Gente que nunca fumou morre de tumor no pulmão. Atletas têm parada cardíaca. Ninguém sabe nada sobre o fim de ninguém, muito menos sobre o próprio.

Não há antídotos contra nosso próprio destino. A maior lição do que podemos fazer com o tempo que nos é concedido foi consagrada ainda antes de Cristo por Horácio, nas suas imortais Odes, conjunto de 103 poemas distribuídos em quatro livros. “Carpe diem quam minimum credulo postero”, diz o filósofo. “Aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã”, na tradução do latim. É uma grande e inestimável lição. Temos, quando muito, o hoje, e é preciso vivê-lo o melhor possível.

O fim de Marília Mendonça, abrupto, chegou na tarde da última sexta-feira, antes que ela pudesse mais uma vez subir ao palco para se encontrar com seu público. Deixa um filho, pequenino, com menos de dois anos. Deixa também e mãe, a avó, amigos. Deixa 391 composições registradas, além de incontáveis rascunhos em seus cadernos. Deixa recordes, como o de Live com maior número de espectadores simultâneos no mundo.

Deixa, sobretudo, milhões de brasileiros, boa parte deles seus fãs, entristecidos e perplexos diante da precariedade da vida. A música para Marília Mendonça parou. Mas, privilégio dos artistas, para quem fica sua música continua, quer seja nos versos ritmados de centenas de composições, quer seja na voz grave que tanta gente emocionou ao longo da última década. Quem morreu foi Marília. Sua obra, essa sim, é imortal.

Corrêa Neves Jr. é jornalista e editor do portal GCN.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.