“As pessoas precisam de três coisas: prudência
no ânimo, silêncio na língua e vergonha na cara”
Sócrates, filósofo grego
O Brasil transformou-se, nos últimos tempos, no palco de um show de horrores permanente, ininterrupto, brutal. Sucedem-se, dia após dia, histórias tão medonhas que mestres do suspense e do terror, como o há muito falecido Edgar Allan Poe e o ainda atuante Stephen King, certamente falhariam se fossem desafiados a criar enredos semelhantes àqueles que têm sido desnudados em Brasília, ora pela CPI da Covid, ora pelo trabalho competente de jornalistas investigativos.
Na reta final da CPI, quando se imaginava que o espaço para novidades ou surpresas havia se esgotado, dois fatos revelados nesta última semana – o primeiro, envolvendo o plano de saúde Prevent Senior; o segundo, relacionado ao empresário Luciano Hang, também conhecido como “o véio da Havan” – deixaram claro que não há limites para a falta de escrúpulos e caráter neste Brasil de hoje.
Mesmo aquele mínimo de dignidade que se espera dos piores bandidos, aquele pedacinho de decência que, sempre se torce, subsista mesmo nos maiores facínoras, foi impossível de encontrar nas ações que são atribuídas aos líderes da Prevent Senior e a Luciano Hang. Fossem convertidos em personagens de ficção, seriam tidos como completamente exagerados e inverossímeis, tamanho o delírio e a falta de humanidade observadas em suas ações.
Tome-se como exemplo a Prevent Senior. Hoje uma das maiores operadoras de planos de saúde do país, é especializada no atendimento do público idoso. Oferece hospitais considerados de primeira linha, caso das várias unidades do Sancta Maggiore, na capital paulista. Desde o início da pandemia, se ouve falar da Prevent Senior. Lá no início, nos primeiros meses da pandemia, o Sancta Maggiore quase foi interditado.
Corria o mês de abril de 2020 e ninguém poderia imaginar o tamanho do desastre que seria o enfrentamento da pandemia pelo governo federal, as insanidades que sairiam da boca do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e muito menos projetar que chegaríamos a 600 mil mortes por covid. Até 6 de abril do ano passado, a cidade de São Paulo acumulava 244 mortes pelo coronavírus (isso mesmo, apenas 244!). Metade delas tinham acontecido num único lugar – mais precisamente, no hospital Sancta Maggiore. A direção se justificava dizendo que as mortes aconteciam ali porque o plano atendia majoritariamente idosos, exatamente o público mais suscetível. O desgaste na imagem da Prevent Senior foi grande, mas breve. Passaria rápido, muito por conta do que pareceu ser, para muitos, um acerto: a aposta em “tratamentos precoces” e a divulgação de resultados supostamente miraculosos.
A Prevent Senior mergulhou com tudo no kit covid. Passou a distribuir cloroquina e todos os outros medicamentes do pacote a qualquer paciente com mera suspeita de covid. Nem precisava ter confirmação para começar a receber os “pacotinhos”, enviados diretamente pelo plano para a casa dos pacientes. O esquema continuou em ritmo intenso mesmo depois da OMS (Organização Mundial de Saúde) e do FDA (Food and Drugs Administration) americano emitirem alertas sobre a ineficácia destes medicamentos para tratar covid.
A justificativa da Prevent para seguir apostando no kit era baseada num estudo, feito por ela mesma, que mostrava “resultados excepcionais” após o “tratamento precoce”, com índices de letalidade que teriam caído para menos de 1/3 daqueles registrados pela cidade de São Paulo. Garantiam ainda ter praticamente zerado a chance de internação. “Entre os dias zero e três da contaminação, a cloroquina evita a internação em 95% dos casos”, disse, numa entrevista à revista Veja, em agosto do ano passado, o diretor executivo Pedro Benedito Batista Júnior.
Médicos-celebridades da Prevent, como Anthony Wong, pediatra, toxicologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, converteram-se em propagandistas do kit covid, defensores apaixonados do tratamento precoce e, mais recentemente, também em negacionistas da vacina.
Numa entrevista concedida à rádio Jovem Pan em outubro de 2020 e que contou com a participação do jornalista Augusto Nunes, um dos maiores apoiadores do bolsonarismo, o médico Wong atacou a obrigatoriedade da vacina. Entre tantas outras insanidades, Wong chegou a afirmar que quem tinha índices altos de anticorpos por já ter tido contato com o vírus não deveria se vacinar. Para ilustrar, citou o próprio exemplo, afirmando que tinha se contaminado e se curado da covid. Repetiu, orgulhoso, que não tomaria a vacina. A solução para a covid era o “tratamento precoce” e as doses maciças de hidroxicloroquina. Muita gente acreditou e a Prevent Senior lucrou dezenas de milhões de reais com o rápido aumento na sua base de clientes.
Agora se descobriu, a partir de um dossiê elaborado por 12 médicos (seis demitidos da Prevent Senior, seis que ainda continuam lá), que tudo era uma enorme farsa. Que mortes foram camufladas, diagnósticos modificados e prontuários adulterados. Nem mesmo o estudo é real. Tudo não passou de uma gigantesca mentira. O esquema, sórdido, funcionava em duas pontas principais.
Na primeira, os médicos do plano sumiam com o registro da doença nos prontuários de seus pacientes. “Curavam” a covid com uma canetada. O mecanismo é um insulto à inteligência e à decência de qualquer um. Qualquer paciente da Prevent Senior que precisasse de atendimento para tratar Covid, inclusive os internados, tinha que ter a CID (Classificação Internacional de Doenças) alterada a partir do 15º dia. A justificativa era o período de incubação do vírus. Depois deste tempo, o paciente não mais tinha covid, ainda que sofresse todas as consequências, derivadas exatamente da... covid. Portanto, o cliente da Prevent que tinha covid, sofria com falta de ar, febre, ausência de paladar ou qualquer outro sintoma, mesmo que estivesse internado na UTI do hospital, de um jeito ou de outro “não teria” mais covid depois de 14 dias porque os médicos tinham sido instruídos a modificar o diagnóstico nos prontuários. O paciente tinha covid, entrava com covid, fazia exame e confirmava que era covid mas, acontecesse o que acontecesse, estaria “curado” do vírus duas semanas depois – ainda que continuasse lutando pela vida, com sequelas. Não há dúvidas de que se tratava de uma ação orquestrada. Os prints de conversas de Whatsapp obtidos pela CPI mostram que os dirigentes do plano determinaram, pura e simplesmente, que os médicos alterassem a CID para qualquer coisa depois de 15 dias. Valia qualquer doença, menos covid.
Na segunda ponta, quando o paciente morria, em grande parte dos casos não constava mais covid exatamente por conta da manobra acima. E já que ele “não tinha mais” covid, de acordo com a canalha manobra da Prevent Senior, ele também “não morria” de covid. Morria de qualquer outra complicação. Insuficiência cardíaca, respiratória, septicemia, falência múltipla dos órgãos. Da forma como tudo era feito, só “morria” de covid o paciente da Prevent Senior que tivesse confirmado o diagnóstico e viesse a óbito em menos de 15 dias. Se resistisse mais tempo, iria morrer de qualquer outra coisa, ainda que não tivesse sofrido nenhum outro problema além da contaminação pelo coronavírus.
Nem é preciso dizer que, além do bom senso, as manobras contrariam todas as indicações das organizações sanitárias do mundo inteiro – e, inclusive, do próprio Ministério da Saúde do Brasil. Como o vírus não mata diretamente, mas sim por conta das complicações que provoca, o Ministério da Saúde instrui a lançar no atestado de óbito tudo que aconteceu com o paciente no momento da sua morte – e, inclusive, a causa primária, a covid.
Obviamente, como ninguém mais morria de covid no Santa Maggiore, a Prevent Senior passou a divulgar os dados que apontavam a baixa letalidade de seus pacientes. Claro, nunca explicou para ninguém a “pequena” manobra que havia feito nos prontuários e atestados de óbito. Preferiu atribuir seu sucesso às “maravilhas” do kit covid e do tratamento precoce.
E o estudo que comprovavam que funcionava? Basicamente o que a Prevent Senior fez foi contabilizar apenas os resultados de quem melhorava depois de receber cloroquina, como poderia acontecer com quem fica bom depois de tomar água de coco ou assistir um programa de TV qualquer – e isso é o que acontece, de um jeito ou de outro, com 85% dos pacientes. Se alguém tomava cloroquina e morria, era desconsiderado do estudo. A lógica é tão tosca que até a diretoria da Prevent Senior adotou outro discurso nas últimas semanas e passou a renegar o próprio estudo. Agora, diz que fez apenas uma planilha para “acompanhar” a evolução dos pacientes. Fingiu que não disse o que por meses sustentou.
O esquema era tão doentio, a irresponsabilidade tão gritante, que desesperada para contrariar o que a realidade impunha, a Prevent Senior mentiu até sobre a causa da morte do doutor Wong. Sim, o defensor do kit covid, do tratamento precoce e crítico ferrenho da vacinação obrigatória morreu de... covid. Foi no dia 15 de janeiro, pouco mais de dois meses depois da entrevista na rádio Jovem Pan, que Anthony Wong perdeu a batalha para o vírus. Tinha 73 anos.
Uma nota divulgada pela família logo depois de sua morte indicava que ele tinha sido hospitalizado com queda de pressão e mal-estar, havia tido diagnóstico de úlcera gástrica e hemorragia digestiva, e que tinha perecido após sofrer uma parada cardiorrespiratória. O que a família – e muito menos o plano – não disse foi que Wong tinha sido diagnosticado com covid pela segunda vez, havia optado pelo tratamento precoce com doses maciças de cloroquina, e que sua morte acontecera exatamente por complicações da doença, resultado idêntico, infelizmente, ao de centenas de milhares de outros brasileiros.
Como se não bastasse tudo isso, tem ainda Luciano Hang. Para o que ele fez, não há adjetivos aplicáveis na língua portuguesa. Imbecilóide bilionário (existem) e bolsonarista apaixonado, ele usou a própria mãe, Regina Hang, morta de covid em 4 de fevereiro, aos 82 anos, no hospital Sancta Maggiore, como "exemplo" para defender o tratamento precoce.
Em vídeo postado pouco depois da morte da mãe, Hang diz que ela era cardíaca, tinha sobrepeso, tomava mais de 20 comprimidos por dia e sofria de diabetes e insuficiência renal. "Por isso, baseado nas informações que circulam, a gente pensou: 'não vamos colocar mais remédio nela. Agora, o questionamento que eu faço todos os dias. Poxa, e se eu tivesse feito o preventivo? Será que não a tinha salvado?", lamentou. No final, ele mostra um cartaz com o nome e telefone de um médico, supostamente defensor do tratamento precoce, e recomenda às pessoas que tenham covid que procurem se informar “antes que seja tarde”.
Assim como no caso de Wong, o que Luciano Hang não disse foi que, ao contrário do seu discurso, sua mãe fez tratamento precoce e acabou submetida a muitas outras idiotices mais. Segundo seu prontuário médico, obtido pela revista Piauí e também pela CPI, Regina Hang começou a tomar hidroxicloroquina, Azitromicina e Colchicina no dia 23 de dezembro, uma semana antes de ser internada. Durante os dias que passou no Sancta Maggiore recebeu ainda ivermectina e foi submetida à ozonoterapia retal (aplicação de uma mistura à base de ozônio pelo ânus). De nada adiantou, é óbvio.
Se já é sórdido o bastante submeter qualquer um a este tratamento tresloucado, ainda pior é descobrir que, publicamente, Luciano Hang omitiu tudo isso e apresentou sua mãe como alguém que poderia ter sido salva se tivesse recebido um tratamento que, de fato, recebeu. Hang tem milhares de seguidores nas redes sociais e patrocina blogueiros que têm outros tantos para espalhar suas ideias, suas versões, suas patologias. Quantas pessoas ele não influenciou para que seguissem o tratamento que ele, pessoalmente, sabia ser ineficaz? Por que usar a mãe para atacar os que defendem a ciência e os tratamentos aprovados? Existe algum limite para ele?
Aparentemente, não. Meu pai, que se estivesse vivo completaria 94 anos nesta semana, gostava de repetir uma piada antiga sobre aqueles que são escravos do dinheiro. Dizia ele que havia conhecido dois comerciantes capazes de qualquer coisa para fechar um negócio. Gostavam tanto de dinheiro que eram capazes de vender suas próprias mães. “A diferença, meu filho, é que o malandro espertalhão vende a mãe. O que também é inescrupuloso, ainda entrega”. Não consigo deixar de pensar que talvez meu pai tenha conhecido Luciano Hang.
Corrêa Neves Jr. é jornalista e editor do portal GCN.
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