OPINIÃO

O Brasil é uma terra indígena

O Supremo Tribunal Federal retomou na última semana o julgamento da tese conhecida como “marco temporal”, segundo a qual, para a demarcação de terras indígenas, os povos deveriam estar na área pleiteada em 5 de outubro de 1988, dia em que foi promulgada a Constituição Federal. Isso quer dizer que, se assim entenderem os ministros do Supremo, os povos indígenas que reivindicarem a demarcação de suas terras precisariam comprovar que já estavam presentes por lá naquela data. Se não o fizerem, não terão direito à demarcação.

Por Guilherme Cortez | 29/08/2021 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

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O Supremo Tribunal Federal retomou na última semana o julgamento da tese conhecida como “marco temporal”, segundo a qual, para a demarcação de terras indígenas, os povos deveriam estar na área pleiteada em 5 de outubro de 1988, dia em que foi promulgada a Constituição Federal. Isso quer dizer que, se assim entenderem os ministros do Supremo, os povos indígenas que reivindicarem a demarcação de suas terras precisariam comprovar que já estavam presentes por lá naquela data. Se não o fizerem, não terão direito à demarcação.

A polêmica em torno do marco temporal não é de hoje. Em 2009, no julgamento de um conflito envolvendo a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, o Supremo foi favorável aos povos indígenas, sob o fundamento de que eles comprovadamente já estavam na região na data da promulgação da Constituição.

O Supremo Tribunal Federal não tem o poder de criar ou modificar leis, o que é competência do Poder Legislativo. A função dos ministros Supremo, bem como dos demais membros do Judiciário, é aplicar as leis aos casos concretos e por isso, em algumas ocasiões, é necessário formular entendimentos acerca da melhor forma de se colocar em prática determinada regra. É isso que está em discussão hoje.

No entanto, existem entendimentos que saem das cabeças dos magistrados – mesmo dos mais altos tribunais – que são tão descolados do texto da lei ou da realidade concreta do país que são difíceis de acreditar. Vejamos.

O artigo 231 da Constituição diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Nenhuma menção é feita ao dia 5 de outubro de 1988 ou a qualquer outra data. Portanto, qualquer entendimento que crie tal parâmetro não passa de uma invenção jurídica, o que não é papel do Poder Judiciário ou dos ministros do Supremo.

Mas o pior da tese do marco temporal não é isso. A definição de uma data de pouco mais de 30 anos atrás para balizar o direito de povos indígenas que existem no Brasil há séculos é algo completamente sem sentido.

Quando os europeus chegaram ao continente em 1500, estima-se que a população nativa era de 3 milhões de indígenas, divididos em cerca de mil povos espalhados por todo o território que viria a ser o Brasil. A colonização trouxe o genocídio desses povos, o extermínio de suas culturas e a redução dessa população a cerca de 800 mil indígenas, segundo o Censo de 2010.

Mas se engana quem pensa que a opressão contra os povos indígenas é coisa do passado, esquecida nos tempos da colônia. Até os dias de hoje, os indígenas brasileiros enfrentam a violência e a ameaça a seus povoados e sua cultura. Segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário, os casos de violência contra indígenas dobraram e as invasões de suas terras cresceram 135% entre os anos de 2018 e 2019. A principal motivação dessas ocorrências são conflitos por terras e tentativas de desmatamento e exploração ilegal de madeira por grandes fazendeiros.

Não existe razão nenhuma em condicionar a existência de povos originários ao ano de 1988. Em um país em que esses povos são expulsos de seus territórios desde 1500, não é possível que o critério para o reconhecimento de uma terra indígena seja uma data há 30 anos. Existem muitos motivos que podem explicar por que um povoado não estava em sua terra no dia da promulgação da Constituição e mesmo assim tem relação com ela.

Por trás de toda ideia aparentemente sem sentido, costumam haver interesses muito claros e nesse caso não é diferente. As terras indígenas são protegidas por lei contra o desmatamento e, por isso, são os principais escudos contra a exploração selvagem dos nossos recursos naturais. Não à toa, são alvos preferenciais de fazendeiros e grandes desmatadores. Dificultar o direito dos povos indígenas às suas terras significa facilitar o acesso ao desmatamento.

O julgamento do marco temporal no Supremo foi adiado para o dia 1º. Espera-se que os ministros do Supremo reconhecem que todo o território que hoje conhecemos como Brasil é uma gigante terra indígena e que a história do nosso povo não começou em 1988.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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