LGBT não é má influência

O tema da proteção à infância e adolescência é muito sério. O Brasil, inclusive, se tornou uma referência mundial nessa matéria com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 31 anos em julho.

Por Guilherme Cortez | 25/04/2021 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Está em discussão na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei 504/2020, de autoria da deputada Marta Costa. Absolutamente inconstitucional, o projeto prevê – ao longo de três artigos que não ocupam uma única página – a proibição em todo o estado da publicidade de “preferências” e movimentos sobre diversidade sexual que possam causar prejuízo às crianças.

Na justificativa do projeto, a deputada menciona que sua intenção é “limitar a veiculação da publicidade que incentive o consumidor do nosso Estado a práticas danosas” e se refere ainda a “vários países” que adotam restrições desse tipo. Como ela não menciona, é difícil saber a quais países a deputada se refere, mas talvez sejam aqueles onde as relações entre pessoas do mesmo gênero são punidas com cadeia, chibatadas e pena de morte. Uma lei semelhante foi aprovada na Rússia, país onde ativistas passaram a ser presos por “propaganda LGBT” e que se tornou um dos mais perigosos do mundo para essa comunidade. Certamente não são bons exemplos.

O tema da proteção à infância e adolescência é muito sério. O Brasil, inclusive, se tornou uma referência mundial nessa matéria com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 31 anos em julho. Apesar disso, nosso país ostenta índices vergonhosos de violência contra jovens. De 2010 a 2020, 103 mil menores de 19 anos perderam a vida vítimas da violência. Segundo estatísticas do Ministério da Saúde, ainda são registrados em média 3 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes a cada hora no Brasil.

O caso do menino Henry, vítima de tortura por seu padrasto, o vereador carioca Dr. Jairinho, foi a mais recente expressão dessa lastimável realidade. Mas não é a única. Ágatha, João Pedro, Emilly, Rebecca, João Vitor, Anna Carolina, Ítalo, Douglas e Maria Alice foram só algumas das crianças que perderam a vida por armas de fogo em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro no ano passado.

Tudo isso mostra que, apesar do princípio constitucional da “proteção integral” de crianças e adolescentes, o Brasil não é um país seguro para as novas gerações e que os nossos legisladores e administradores públicos deveriam dedicar toda a atenção a esse tema.

Mas não é isso que faz a deputada Marta Costa. Ao invés de se dedicar às causas da violência e abusos contra crianças e adolescentes, ela usa de uma pauta tão sensível para estigmatizar lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transexuais (LGBTs). Como o texto do projeto não é específico, abre brecha para que quase tudo seja entendido como parte da publicidade a ser proibida por lei.

Quais seriam as propagandas que trazem prejuízo aos jovens? Uma imagem de duas mulheres que adotam um filho, como a lei permite? Um beijo entre homens? E os desenhos e programas infantis que mostram cenas de romances entre meninos e meninas: vão ser proibidos também? Ou nesse caso não é um conteúdo impróprio? Quais são as “práticas danosas” cometidas por pessoas LGBTs que o Estado deveria desincentivar? Onde são exibidas essas propagandas de “preferências” sexuais? Porque eu só me lembro de comerciais de cerveja que mostravam mulheres seminuas e homens comentando sobre seus corpos. É a isso que a deputada se refere?

Em 2016, eu participava de um projeto da UNESP que se propunha a discutir temas de direitos humanos com alunos do 6º ano da rede estadual de ensino de Franca. Guardo com muito carinho as memórias dos estudantes do Dante Guedine e Evaristo Fabrício, mas não esqueço dos inúmeros casos de bullying, ofensas e violência com caráter sexista e racista que as crianças praticavam entre si sem saberem direito o significado de tudo aquilo. Meninos que desrespeitavam as meninas, alunos negros que eram xingados e excluídos pelos colegas, garotos zombados porque andavam com as meninas ou simplesmente porque não gostavam de jogar futebol...

Tudo isso, sim, faz muito mal às nossas crianças e deixa sequelas para o resto da vida. Entretanto, não é a convivência com a diversidade que acarreta tudo isso, mas justamente a falta de respeito e conscientização sobre essas diferenças.

Sem apresentar nenhum fundamento (porque não existe um), a deputada quer chegar à conclusão de que a orientação sexual ou identidade de gênero alheia torna uma pessoa indesejável, imoral e que deveria ser escondida para não “contaminar” as crianças – um pensamento tão preconceituoso que é difícil de imaginar que tenha espaço na maior assembleia estadual do país no ano de 2021. Essa prática de esconder pessoas “indesejadas” não é novidade, mas esteve presente em diversos momentos da nossa história, como nas recorrentes tentativas de esconder o criminalizar o samba, as religiões de matriz africana e as expressões da cultura negra no Brasil.

Ainda mais estarrecedor é constatar que o projeto tramita em regime de urgência na Assembleia. Ou seja: em meio a uma pandemia, a prioridade de alguns legisladores do estado com o maior número de mortes por covid-19 no país é esconder as pessoas LGBTs. Espera-se que a maioria dos deputados tenha mais juízo. Há muitas práticas que podem influenciar negativamente as crianças, a começar pela intolerância, o preconceito e a antipatia. A diversidade não é uma delas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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