Protocolos inúteis

A diferença entre o ano que terminou e o que acaba de começar é que a vacina, antes mera perspectiva, é agora uma questão de tempo, apesar da relutância federal, capitaneada pelo presidente da República Jair Bolsonaro.

Por Corrêa Neves Jr. | 10/01/2021 | Tempo de leitura: 6 min
Diretor do Portal GCN

“Os hipócritas são como as tâmaras: o doce está fora, o mel nas palavras e o duro lá dentro, na alma”
Matéo Aleman, escritor espanhol

 

O ano de 2021 começou não muito diferente do que terminou 2020. Mortes diárias de covid-19 que se contam aos milhares no Brasil; países endurecendo as medidas restritivas como único recurso para frear o ritmo do contágio e dos óbitos; negacionistas apelando a argumentos medievais para rechaçar a vacina como solução; cientistas, médicos e profissionais de saúde, exaustos, numa dupla batalha – contra o vírus e contra a ignorância – na luta por salvar tantas vidas quanto possível.

A diferença entre o ano que terminou e o que acaba de começar é que a vacina, antes mera perspectiva, é agora uma questão de tempo, apesar da relutância federal, capitaneada pelo presidente da República Jair Bolsonaro, um ignorante orgulhoso que personifica como poucos o mantra do “faça o que eu falo mas não faça o que eu faço”. A última de sua Excelência, depois de desqualificar o quanto pode os esforços globais pela vacina e de dizer, em tom de despropositada brincadeira, que quem tomar alguns dos imunizantes prestes a se tornarem disponíveis corre o risco de virar “jacaré”, foi baixar a classificação de “ultrassecreto” - reservado para documentos que coloquem em risco a segurança do Estado e devem ser mantidos sob sigilo por 100 anos – sobre os dados de sua própria carteira nacional de vacinação.

Alguém tem alguma dúvida de que Jair, apesar de flertar com as teses conspiratórias que apontam as vacinas como uma espécie de potencial “arma biológica” que serve ao controle – ou extermínio – de populações, tomou todas as doses, direitinho, do Programa Nacional de Imunização desde que era criancinha? Não virou jacaré, obviamente, apesar de ter se transformado numa anta. Mas isso não foi culpa das vacinas. Tem mais a ver com o olavismo. Ou com algum azar genético. Muito provavelmente, com um pouco de cada.

Em Franca, Gilson de Souza (DEM) deu lugar a Alexandre Ferreira (MDB) no comando da prefeitura. O novo prefeito assumiu no meio do tsunami da segunda onda, que fez disparar o número de novos casos positivos diários, de internações e voltou a fazer das mortes pela covid rotina diária na cidade. Diferente do seu antecessor, que corria de qualquer decisão difícil mais rápido do que o Diabo foge da cruz, Alexandre assumiu para si, como convém, a responsabilidade. Disse, com todas as letras, que não vai fugir do problema e lançou a iniciativa Todos Contra o Covid. Tem repetido que acompanha a evolução da pandemia com atenção e defende a união da comunidade para superar a covid-19. É uma boa postura que, por si só, não garante o êxito. É preciso mais.

Desde que o governador João Doria (PSDB) lançou o Plano SP como principal instrumento para o enfrentamento do coronavírus, com níveis diferentes de restrições para cada região, definidos a partir dos indicadores de evolução da pandemia (casos, internações, óbitos, e por aí vai) e simbolizado por distintas cores, assistimos uma verdadeira batalha entre conscientes x negacionistas a cada etapa de classificação.

Todo o debate, invariavelmente, passa pela discussão sobre se bares, restaurantes e buffets podem abrir, sobre porque é mais legítimo que bancos e supermercados funcionem do que outros segmentos, se é melhor um período menor (para impedir o acesso) ou maior (para diluir o fluxo), ou ainda se o conjunto de normas preconizado para a volta às aulas tem condição de proteger a saúde de crianças, jovens, professores e funcionários dos estabelecimentos de ensino públicos e particulares.

Nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que esta discussão é completamente inútil. Não faz a menor diferença se estamos na fase Vermelha (mais restritiva) ou Verde (com a quase normalidade das atividades). Tanto faz autorizar seis horas de funcionamento do comércio, oito horas, doze horas... Pouco importa restringir a apenas 40% da capacidade dos estabelecimentos autorizados a funcionar ou liberar geral. Não muda nada estabelecer 20h, 22h, 23h como horário limite para o funcionamento de bares e restaurantes.

A verdade, pura e simples, é que as cores que simbolizam o Plano SP viraram um arco-íris ilusório. Ninguém segue coisa nenhuma. Não faz, na prática, a menor diferença estar classificado na fase Vermelha, Laranja, Amarela, Verde... Cada um tem feito o que quer. Contar com os protocolos é pior do que brincar de roleta-russa, uma inutilidade completa. Os conscientes tentam se proteger evitando, tanto quanto possível, frequentar os ambientes expostos. É o que resta, porque bom senso, prudência e responsabilidade andam passando longe.

Este último final de semana foi emblemático. No Polo, que se transformou em símbolo do deboche e desrespeito aos protocolos, a noitada sertaneja seguiu forte na última sexta-feira até 23h30 – e isso, apesar dos bares estarem proibidos de funcionar depois das 20h, e os restaurantes, após as 22h. Máscara, ninguém usava. Sentado, ninguém estava. E apesar disso tudo, a Polo operou como se protocolo não houvesse.

Na noite de sábado, bares e restaurantes do circuito Paulo VI, Champagnat, Alonso Y Alonso e Centro funcionavam sem qualquer pudor. Dentro dos estabelecimentos e no entorno, jovens desfilavam, em bandos, sem máscaras. Tudo isso, depois das 23h, horário em que, de acordo com o Plano SP, todos deveriam estar de portas fechadas. Ressalte-se: não falo aqui do pequeno boteco de um bairro periférico, difícil de ser percebido por quem quer que seja. São estabelecimentos localizados nas áreas nobres da cidade, reunindo centenas de pessoas e que, para piorar, não tem qualquer dificuldade em postar nas suas redes sociais a muvuca que promovem. Um acinte, para dizer o mínimo.

Nas lojas, especialmente as de comércio popular, vê-se muita gente aglomerada. O mesmo vale para supermercados, com filas gigantescas em caixas, estacionamentos e afins. Desconheço algum estabelecimento que esteja ainda contando quantas pessoas adentram no recinto, o que torna óbvia a constatação de que o limite de 40% da capacidade não é seguido por absolutamente ninguém. Se há momentos em que há pouca gente em algum lugar, é porque faltam clientes, não porque as regras do Plano SP impeçam.

Alexandre Ferreira tem dito que espera a adesão da comunidade a seu plano Todos Contra a Covid. Disse também que aqueles que não cooperarem, terão que arcar com as consequências de seu desrespeito. É uma tentativa válida, mas a julgar pelas conclusões de seu homônimo que governa Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), que mandou fechar tudo a partir desta segunda-feira depois de concluir que o diálogo não deu certo e que houve abusos, seria prudente o prefeito de Franca reforçar logo as equipes da Vigilância Sanitária e preparar os talões de autuação. É chato, mas é o possível para evitar o pior: tanto as mortes quando o fechamento de toda a economia.

A vacina está logo à frente, mas entre começar a imunização e todo mundo estar protegido, vão-se, na melhor das hipóteses, meses. Multiplicam-se as famílias que perderam seus entes ou que têm membros com sequelas após serem contaminados. O custo da inação é pago em vidas.

Nos meses que estão por vir até que estejamos protegidos, este é um preço alto demais a pagar, que será contabilizado, se nada mais for feito, nas centenas de mortos. Que Alexandre Ferreira faça a diferença que Gilson de Souza recusou-se a exercer, ainda que protestos e reclamações aconteçam. Afinal, como ensina Kalil no seu histórico pronunciamento feito no dia 6, “governar não é agradar. Governar é governar”. Não podia ser mais simples. Nem mais verdadeiro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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