A audição, essa capacidade de ouvir, benza-a Deus, é potencial abençoado dos animais. Sem desfazer dos demais sentidos, diria que é o mais importante deles. Por serem capazes de ouvir e perceber variedade enorme de sons, animais racionais e irracionais, se safam de perigos e ameaças. Os sons agradáveis despertam neles sensações igualmente prazerosas. Identicamente agradáveis. Porque escutam, os seres são capazes de se comunicar e, especialmente os humanos, de formatar linguagens que lhes permitem formular e parir ideias, obras literárias, discursos de amor e, alguns, infelizmente de ódio. Apenas e portanto porque somos capazes de ouvir, somos capazes de falar. A audição é o sentido de alerta que nos auxilia em nossa própria defesa. Por meio dela podemos ouvir a buzina do automóvel; o alarme de incêndio; antecipamos tempestades e nos protegemos. Somos capazes de ouvir e fazer música, além de nos deleitarmos com elas, desde as mais simples melodias, até aquelas mais elaboradas, dodecafônicas, atonais, bem complicadas. Podemos desfrutar da maravilhosa sensação que nos provoca a voz do ser amado e, noutro sentido, escaparmos do desprazer do encontro com pessoas desagradáveis ao percebermos, pelo som que emitem, que elas se aproximam... Pela capacidade de reconhecer sons, desenvolvemos empatias. Bandas marciais despertam-nos euforia. Orquestras filarmônicas nos elevam o espírito para além das nuvens. Ritmos nos põem em movimento e canções de ninar são capazes de acalmar gigantes enfurecidos.
Infelizmente, porque somos capazes de ouvir estamos expostos ao desprazer de agressões que nos chegam através dessa preciosa capacidade. No trânsito, por exemplo, a buzinada estridente, para informar que atrás de nós tem alguém muito importante e com tanta pressa que exige passagem. Nos discursos políticos as mentiras deslavadas, promessas descabidas, as saídas ardilosas e desculpas esfarrapadas na tentativa de engabelar o ouvinte. Nos tribunais de justiça as sentenças despropositadas, impróprias e inadequadas que protegem, amparam, apadrinham e socorrem poderosos e atacam, perseguem e tiranizam os mais frágeis - aqueles que precisam muito mais de proteção e imparcialidade.
Porque somos capazes de ouvir, estamos sujeitos ao besteirol que, como onda de excrementos, invade a mídia e nos atinge. Exemplo disso é a reforma proposta para a “Última flor do Lácio, inculta e bela”. Sugestão que vem para esclarecer e – jamais – confundir, é chamada de “Neutro”. Vão acabar com o feminino, o masculino. Todas as palavras serão neutras. Um doce para quem pitacar sobre a origem e invenção do novo vocabulário.
Sou boa de ouvido: percebo desafinações nas músicas, sou considerada razoavelmente afinada para cantar, querida ex-professora de piano afirmava que eu teria “ouvido absoluto”, jargão conhecido dos aficionados. Pois confesso, estranhei. E olhe que sou craque na língua do Pê. Pois fiquei boiando ao ser apresentada ao “Neutro”. Senão, vejamos algumas mudanças. Algumas, apenas: o entendimento completo desafia meus neurônios
Ela e ele, para começo de conversa, serão apenas ile. Dela e dele, dile. Aquele e aquela virarão aquile; nela e nele, nile. Essa e esse, se tornam isse. Daquele e daquela, daquile. Desta e deste, diste. Sua e seu se tornam sue; nossa e nosso, nosse. Exemplos de frases: “Elas/eles são amigas/amigos” será, genericamente, “Iles são amigues”. Outro exemplo: “João deu um beijo nela/nele” - fico imaginando a cara da minha mãe ao ouvir a frase, que no Neutro seria assim: “João deu um beijo nile.” Experimente entender: “Sue amigue veio aqui. Ile gosta muito de nosse amigue Júlia.
Regras: palavras terminadas em a ou o terão essas vogais trocadas por e: menine, garote, velhe, alune, filhe, namorade. Palavras terminadas em co e ca (médico, médica) terão a desinência genericamente trocada pelo que: genericamente médique, nesse caso. Pedagogo, pedagoga? Psicólogo, psicóloga? Treine: troque os finais pelo genérico gue e veja como fica.
Não. Não foi Dilma quem inventou. Mas foi a turma dela. Estou considerando a possibilidade de ficar muda.
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