Delírio politiqueiro

O prefeito Gilson de Souza (DEM) ganhou, nesta última semana, o inusitado reforço do vereador Adérmis Marini (PSDB), seu opositor, na sua peculiaríssima estratégia de combate ao coronavírus.

16/08/2020 | Tempo de leitura: 7 min

“Aquele que fundamenta seu argumento no escândalo e na briga mostra que sua razão é fraca”

Michel de Montaigne, político e filósofo francês

 

O prefeito Gilson de Souza (DEM) ganhou, nesta última semana, o inusitado reforço do vereador Adérmis Marini (PSDB), seu opositor, na sua peculiaríssima estratégia de combate ao coronavírus. Apesar de disputarem a paternidade de 12 respiradores junto ao governo do Estado, batalha que cada qual trava também com a deputada estadual Graciela Ambrosio (PR), que se apresenta como “mãe” da criança, e com outros vereadores e prefeitos da região, que por sua vez juram que o mérito é deles, Gilson e Adérmis propõem, neste instante, a mesmíssima abordagem, sem tirar nem pôr, do enfrentamento à covid-19.

O receituário de ambos inclui “conscientização”, “leitos” e jargões como “vamos superar” na mesma medida e intensidade em que exclui qualquer medida que seja traduzida como aumento de fiscalização, maiores restrições ou qualquer coisa que o valha. Para Gilson e Adérmis, candidatíssimos a prefeito, “lockdown” é palavrão. As estatísticas, um mero inconveniente. O Plano SP, do governador João Doria, um entrave. O que vale mesmo é dizer qualquer coisa que agrade o maior número de pessoas. Ou, mais especificamente, o maior volume possível de eleitores. Afinal, ninguém ignora, novembro está logo ali.

Antes que você venha a dizer que estou louco, basta resgatar o que um e outro disseram nos últimos dias. “Não há menor possibilidade de decretar lockdown”, sapecou o prefeito na quinta-feira, 30 de julho, em vídeo gravado ao lado da vereadora Cristina Vitorino (Republicanos). “Não precisamos de lockdown”, fez coro Adérmis Marini, em postagem nas suas redes sociais neste final de semana.

Tanto um, quanto o outro, fogem o quanto podem da palavra “multa” ou de qualquer outro termo que implique em punir quem descumpre as regras de quarentena e distanciamento social. Na sua postagem deste final de semana, Adérmis recorre ao termo “conscientização” várias vezes. Em nenhuma oportunidade, fala em aplicar qualquer tipo de sanção a quem descumpre as regras. Gilson de Souza faz o mesmo. Detentor da caneta, não designou um único fiscal a mais para as equipes da Vigilância Sanitária ao longo de cinco meses de pandemia. Também não fez um único pronunciamento exortando as pessoas a cumprirem as regras. Não determinou nenhuma operação para coibir o deslocamento de pessoas sem máscara nos espaços públicos. Assistiu a tudo, impávido.

Há mais exemplos de sintonia. Ambos, depois de endossarem o movimento pela abertura de tudo, há cerca de três meses, e ignorarem naquele instante que a falta de leitos era o drama crucial, fizeram nas últimas semanas da “conquista” de respiradores o objetivo de sua guerra particular. Estão certos no esforço, mas chegaram tarde.

Há três meses, quando fizeram coro ao “abre geral”, ignoraram os alertas que fiz. Preferiram se aliar à maioria que dizia que estava “tudo bem”, que “Franca estava vencendo o vírus”, a acenaram positivamente para igrejas, academias, donos de vans de transporte escolar, de autoescolas, de salões de beleza, na ilusão de que a solução estava próxima. Voz solitária, avisei que não era isso que aconteceria. Que tínhamos um problema sério de falta de leitos. Muita gente entendeu e despertou para o que eu falava. Infelizmente, nenhum deles político com poder de decisão no município. Pelo menos, não naquele momento, quando uma ação mais efetiva poderia ter feito grande diferença.

O mantra da vez são os leitos. O “despertar” na classe política veio apenas depois que a Santa Casa passou a operar com 100% de sua capacidade esgotada por dias seguidos. Gente começou a ser “internada” no PS à espera de vagas. Pacientes foram encaminhados para cidades distantes. Foi um horror. É óbvio que precisamos de leitos, tanto quanto é óbvio que eles serão instalados, mas não da forma que apresenta Adérmis nem do jeito que Gilson disse que aconteceria.

O prefeito, apressado, chegou a anunciar na semana passada que já havia pago R$ 1,4 milhão para a Santa Casa. Não é verdade. Apoteótico, Adérmis gravou vídeo em São Paulo para dizer que, depois de uma reunião com o secretário de Desenvolvimento Regional, tinha conseguido a liberação dos respiradores, que chegariam, enfim, na sexta-feira. Chegaram, mas depois, assim como chegariam do mesmo jeito ainda que o vereador não tivesse ido a São Paulo – o próprio secretário Vinholi, quando veio a Franca na semana anterior, havia anunciado que mandaria os equipamentos. São os mesmos equipamentos, e não adicionais. Todos falam da mesma coisa, o que confunde a população. Os leitos que o Vinholi anunciou quando esteve em Franca são os mesmo que o Gilson vai pagar, que por sua vez são os mesmos da postagem da delegada Graciela e que, da mesma forma, representam os famosos respiradores que Adérmis “conquistou”.

Mais importante, é preciso deixar claro que respiradores não são leitos. A diretoria da Santa Casa já explicou isso uma dúzia de vezes. Depois que eles recebem o dinheiro, o que ainda não aconteceu, e após a chegada dos equipamentos, o que se deu neste final de semana, o hospital precisa de semanas para instalar tudo, preparar as equipes e deixar os leitos em condição operacional. Na média, a Santa Casa põe de pé 5 leitos a cada 15 dias. Com sorte, teremos mais três funcionando esta semana. Se Deus ajudar muito, cinco. Dificilmente, a tempo de fazer efeito para avaliação das fases do Plano SP, cuja classificação será anunciada pelo governo do Estado na sexta-feira.

Além disso, é imperativo advertir mais uma vez: só os leitos não bastam. Franca vive um momento e descontrole da pandemia. Não precisa de uma análise profunda para concluir a mesma coisa. Basta olhar os números da última semana. No sábado, dia 8, foram 84 casos positivos. Domingo, 9, tivemos 10. Na segunda, 10, nada menos de 124 infectados. Outros 58 se somaram na terça, 11. Na quarta, 12, foram 146. Na quinta, 13, acrescentamos 67. Sexta-feira, dia 14, foram mais 174. E sábado, 16, o recorde num único dia, com 182 confirmações. No período, Franca registrou 845 casos positivos de coronavírus, média de 100,5 confirmações por dia. Neste mesmo intervalo, foram 12 óbitos. Tudo isso não desaparece com leitos, nem com “otimismo” ou “oração”, muito menos com discurso vazio. É preciso ação.

Os leitos são fundamentais para atender quem precisa de socorro – mas não reduzem o número de pessoas que precisam de assistência. Muito pelo contrário, se não houver um freio no ritmo do contágio, nenhuma quantidade de leitos será suficiente para a demanda crescente. Apenas nestes últimos dias tivemos tantos casos confirmados na cidade quanto no mês de julho inteiro. E três vezes mais do que o acumulado entre março e junho. É muita gente ficando doente. São muitas pessoas perdendo a vida.

Falar em punição, restrição, fiscalização não é assunto que seduza nenhum candidato. Todos os que anunciaram intenção de participar da disputa tem ficado nas superficialidades, nas generalidades, qualquer que seja o partido ou o viés ideológico. Não há exceção. Mas aqueles que ocupam cargo eletivo, como Gilson e Adérmis, precisam despertar, urgentemente. Mesmo porque, tem responsabilidades imediatas.

O momento exige ação firme, fiscalização efetiva, medidas drásticas para reduzir a circulação de pessoas. Pagamos um preço caro demais por ignorar a realidade durante meses, o que nos manteve além do que seria aceitável numa quarentena que ainda está longe do fim.

Que não repitamos o erro agora. Há contaminações que podem ser impedidas. Mortes que podem ser evitadas. Tragédias que não precisam ser escritas. Para isso, é preciso coragem, desprendimento e espírito prático. Pode ser que não rendam votos imediatamente, mas certamente, no sempre implacável julgamento da história, reservarão a seus protagonistas lugares melhores do que aqueles onde se sentam hoje.

PS: muita gente “culpou” a região pela classificação de Franca na fase Vermelha. O prefeito Gilson de Souza foi um deles. Dizia-se que era por conta da ocupação de pacientes dos municípios vizinhos que não tínhamos leitos suficientes para Franca, como se não fosse responsabilidade da cidade sede da região o atendimento da alta complexidade de toda a população. Mas o destino costuma ser irônico. É possível que Franca avance de fase na sexta-feira para a Laranja. Se acontecer, não será por causa dos respiradores do Gilson/Adérmis/Graciela/Deus e todo mundo, mas sim em razão dos leitos que começaram a funcionar em cidades da região, como São Joaquim da Barra e Ipuã. Graças a estes municípios, o índice de ocupação dos leitos da região caiu para menos de 80%. Será que alguém vai reclamar das cidades pequenas agora?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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